Violência pública
Aos que ficam a conta vai pra alma.
Segunda feira, maio de 2017
09h45
__ Mãe! Manhê! Mãe, tá ai?
A mãe aparece na sala segurando alguns lençóis. Com passos apressados sai do quarto. Tem na cabeça uma faixa de pano branco que prende os cabelos ruivos e crespos, o avental com alguns dias de uso está meio úmido. Ele esconde parte do vestido de uso caseiro. Amarrotado.
__ Oi, que foi? Já voltou da escola? O que aconteceu?
__ Nada, mãe. A professora faltou de novo hoje, não tinha substituta e o diretor dispensou a gente porque estava chovendo e não dava pra ter aula nem de educação física.
__ Verdade isso, Pedrinho?
__ Claro que é mãe, pode perguntar na escola.
A mãe atravessou a sala com ar desconfiado e seguiu para o tanque nos fundos do quintal, protegido por um coberto improvisado com duas telhas de amianto. Não distante, não mais que uns cinco metros da porta da cozinha.
__ Não sei não. Pensou alto Dona Dolores, viuva de marido morto num crime não esclarecido pelas autoridades.
10h12
__ Mãe! Manhê! Mãe, tá ai?
A mãe na cozinha com uma vassoura nas mãos. A tira branca que ainda prendia os cabelos ruivos e crespos pela cabeça mostravam a essa altura manchas de suor. O avental, antes úmido, agora se via quase ensopado.
__ Oi, Pedrinho. O que foi, menino. Vai fazer 13 anos e parece que tem dois.
__ Mãe, o que vai ter de almoço? Vai demorar?
__ Não enche, menino, não vê que estou trabalhando? O almoço vai sair na hora do almoço e agora ainda são dez e pouco.
__ Tô com fome , mãe.
__ Se estivesse na escola você não estaria com fome. Então aguenta e pára de me chamar a toda hora.
10h37
__ Mãe! Manhê! Mãe, tá ouvindo?
Lá do quarto ela respondeu:
__ O que é agora, Pedrinho?
__ Posso brincar na rua?
__ Nããão!!!
__ Ah! Por que, mãe?
__ Porque não, pega um livro e vai estudar.
11h09
__ Mãe, manhê!
__ O que é?
__ Onde você está?
Do banheiro ouve-se o barulho da descarga.
11h27
__ Mãe, posso falar uma coisa?
__ Não, não pode. Continua estudando e fique quietinho ai.
__ Mas mãe, to com fome.
__ Daqui a pouco esquento a comida, ainda é cedo pra almoçar.
12h16
__ Terminei, mãe. Fiz toda a lição e estudei bastante já.
__ Tá bom. Pega o dinheiro na gaveta e vá ao mercadinho do Seu Luis e compre uma lata de sardinha.
__ Oba! Vai ter macarrão com sardinha, mãe? Posso compra um doce também, mãe?
__ Não.
__ Não o que mãe, o macarrão ou o doce.
__ Não para o doce. Estou sem dinheiro.
__ Ah!
23h48
A casa num silêncio absoluto, as luzes quase todas apagadas. Somente uma lâmpada iluminava mal e mal o corredor do banheiro alcançando o dormitório. Dona Dolores, cansada pelo dia intenso de trabalho, deitava sobre a cama, os lencóis limpos exalavam o a fragrância do alvejante.
00h27
Não consegue adormecer. Vira-se de um lado para outro, a noite quente e o ventilador próximo a ela faz circular um arzinho quase refrescante. Quase.Sobre o gaveteiro, empilhados, alguns recortes de jornais e revistas. Ao lado desses um caderno transformado em de livro de recordações. Nele vários recortes.
__ Já dormiu ou está acordado, Chico?
__ Dormia, você me acordou. Vê se dorme também, amanhã levanto cedo.
__ O Pedrinho dorme também. Não consigo pegar no sono. Mas, boa noite, querido.
__ Boa noite, Dolores.
02h43
Dolores, desde criança é sonâmbulo. Levantou-se e caminhou suavemente pelo quarto, de um lado a outro da cama, foi para a sala, para a cozinha, ao banheiro e voltou ao quarto. Abriu o livro de recordações e pelas páginas acariciou os recortes ali colados, leu cada manchete nos antigos jornais. Falavam sobre coisas estranhas. Anunciavam a tragédia ocorrida num domingo envolvendo uma família, quatro anos atrás no Parque do Ibirapuera:
Pai e filho são brutalmente assassinados em parque público.
Filho reage a assalto, tenta defender o pai e leva tiro na cabeça.
Domingo no Parque. Mãe salvou-se por ter ido ao banheiro.
06h30
__ Filho, acorda, tá na hora de ir pra escola. Seu pai já saiu pra trabalhar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário