13/03/2013

Violência pública

Aos que ficam a conta vai pra alma. 
Segunda feira, maio de 2017 
09h45 
__ Mãe!  Manhê!  Mãe, tá ai? 
A mãe aparece na sala segurando alguns lençóis. Com passos apressados sai do quarto. Tem na cabeça uma faixa de pano branco que prende os cabelos ruivos e crespos, o avental com alguns dias de uso está meio úmido. Ele esconde parte do vestido de uso caseiro. Amarrotado. 
__ Oi, que foi? Já voltou da escola? O que aconteceu? 
__ Nada, mãe. A professora faltou de novo hoje, não tinha substituta e o diretor dispensou a gente porque estava chovendo e não dava pra ter aula nem de educação física. 
__ Verdade isso, Pedrinho? 
__ Claro que é mãe, pode perguntar na escola. 
A mãe atravessou a sala com ar desconfiado e seguiu para o tanque nos fundos do quintal, protegido por um coberto improvisado com duas telhas de amianto. Não distante, não mais que uns cinco metros da porta da cozinha. 
__ Não sei não. Pensou alto Dona Dolores, viuva de marido morto num crime não esclarecido pelas autoridades. 
10h12 
__ Mãe! Manhê! Mãe, tá ai? 
A mãe na cozinha com uma vassoura nas mãos. A tira branca que ainda prendia os cabelos ruivos e crespos pela cabeça mostravam a essa altura manchas de suor. O avental, antes úmido, agora se via quase ensopado. 
__ Oi, Pedrinho. O que foi, menino. Vai fazer 13 anos e parece que tem dois.
__ Mãe, o que vai ter de almoço? Vai demorar? 
__ Não enche, menino, não vê que estou trabalhando? O almoço vai sair na hora do almoço e agora ainda são dez e pouco.  
__ Tô com fome , mãe. 
__ Se estivesse na escola você não estaria com fome. Então aguenta e pára de me chamar a toda hora. 
10h37 
__ Mãe! Manhê! Mãe, tá ouvindo? 
Lá do quarto ela respondeu: 
__ O que é agora, Pedrinho? 
__ Posso brincar na rua? 
__ Nããão!!! 
__ Ah! Por que, mãe? 
__ Porque não, pega um livro e vai estudar. 
11h09 
__ Mãe, manhê! 
__ O que é? 
__ Onde você está? 
Do banheiro ouve-se o barulho da descarga. 
11h27 
__ Mãe, posso falar uma coisa? 
__ Não, não pode. Continua estudando e fique quietinho ai. 
__ Mas mãe, to com fome. 
__ Daqui a pouco esquento a comida, ainda é cedo pra almoçar. 
12h16 
__ Terminei, mãe. Fiz toda a lição e estudei bastante já. 
__ Tá bom. Pega o dinheiro na gaveta e vá ao mercadinho do Seu Luis e compre uma lata de sardinha. 
__ Oba! Vai ter macarrão com sardinha, mãe? Posso compra um doce também, mãe? 
__ Não. 
__ Não o que mãe, o macarrão ou o doce. 
__ Não para o doce. Estou sem dinheiro. 
__ Ah! 
23h48  
A casa num silêncio absoluto, as luzes quase todas apagadas. Somente uma lâmpada iluminava mal e mal o corredor do banheiro alcançando o dormitório. Dona Dolores, cansada pelo dia intenso de trabalho, deitava sobre a cama, os lencóis limpos exalavam o a fragrância do alvejante. 
00h27 
Não consegue adormecer. Vira-se de um lado para outro, a noite quente e o ventilador próximo a ela faz circular um arzinho quase refrescante. Quase.Sobre o gaveteiro, empilhados, alguns recortes de jornais e revistas. Ao lado desses um caderno transformado em de livro de recordações. Nele vários recortes. 
__ Já dormiu ou está acordado, Chico? 
__ Dormia, você me acordou. Vê se dorme também, amanhã levanto cedo. 
__ O Pedrinho dorme também. Não consigo pegar no sono. Mas, boa noite, querido. 
__ Boa noite, Dolores. 
02h43 
Dolores, desde criança é sonâmbulo. Levantou-se e caminhou suavemente pelo quarto, de um lado a outro da cama, foi para a sala, para a cozinha, ao banheiro e voltou ao quarto. Abriu o livro de recordações e pelas páginas acariciou os recortes ali colados, leu cada manchete nos antigos jornais. Falavam sobre coisas estranhas. Anunciavam a tragédia ocorrida num domingo envolvendo uma família, quatro anos atrás no Parque do Ibirapuera: 
Pai e filho são brutalmente assassinados em parque público.  
Filho reage a assalto, tenta defender o pai e leva tiro na cabeça. 
Domingo no Parque. Mãe salvou-se por ter ido ao banheiro.
06h30 
__ Filho, acorda, tá na hora de ir pra escola. Seu pai já saiu pra trabalhar.


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