31/03/2012

Ordem sem progresso

Dias normais. 

Politicagens, impostos altos, malidicência e enganação.
Dias de chuva, o gosto azedo, perfume forte e ilusão.
Breves mentiras, miragens tortas, falso brilhante e excitação.
Na Big City, morte no asfalto, o Big Brother e mutilação.


Um dia de paz. Aproveito para ficar em pé!









Esqueço tudo no mato. Há ordem e paz. Sem progresso.



25/03/2012

Esporte Espetacular

Não entendo como podem aplaudir. O que leva essa gente buscar tamanha violência?

A TV descobriu o filé comercial. Há público para o tal UFC, acho que é esse o nome da categoria ou se é uma liga, não sei exatamente, e dão a ela o singelo nome de "artes marciais". Já estão criando ídolos num trabalho impecável de marketing. Na novela das oito (ou nove e vinte e três) da TV Globo, Fina Estampa a qual assisti os capítulos finais, criaram um personagem tipo bom rapaz, galãzinho, cheio de valores éticos, mas que, contraditoriamente, no octógano se transforma num troglodita bossal que espanca com socos, pontapés e encoxadas disfarçadas os adversários, aplaudido pela namorada e pelos filhos dela - Campeão do Mundo, gritavam todos. 
Em breve estreia um reality com o tema na mesma emissora. Chega a ser obtuso esse teatro de horrores. Me desculpem os fãs, reconheço que há muitos, mas, não dá pra aguentar tanta estupidez.
É muita violência para escancarada aos quatro cantos e, pior, fazem dos protagonistas, os novos heróis nacionais. Como se não bastassem os de Brasília. 


Recentemente li uma reportagem que falava sobre os malefícios da agressão à caixa craniana, ainda mais se ela for recorrente. Para se ter uma idéia, dizia a matéria, o nosso cérebro tem a consistência parecida com uma gelatina, dessas que compramos no mercado, vermelha, verde, amarela, deduzi, e é fácil entender o que acontece à massa encefálica dos gladiadores do século 21. Com o tempo vem a perda da memória, a redução do raciocínio lógico, inevitável o comprometimento da coordenação motora e outras coisas. Sabe-se do destino dos boxeadores aposentados.

As orelhas deformadas são características dos praticantes e imprimem ao semblante dos bruta-montes um quê acentuado de imbecilidade. O tipo de cara feia, de machão incontestável, contrasta com as atitudes, seus corpos se esfregam o tempo todo nessas lutas, um ao outro, remetendo ao espectador a ideia de cortejamento  bizarro de pré acasalamento entre animais do mesmo gênero.


Se é uma modalidade esportiva, acredito que não deveria ser. O judô tem mais cara de esporte do que isso aí.
Vejo que está mais para a apologia à violência, gratuita e sem nexo. Num mundo com tantas aberrações institucionalizadas - como a política, a do Brasil em especial, das organizações religiosas que vendem pacotes de fé, da segregação racial, da FIFA da CBF, COE e tantas outras, mais essa ainda? 
Quando os argumentos se esvaem, quando a capacidade de articulação inteligente se perde resta a força bruta.
Difícil imaginar os praticantes da modalidade numa cadeira universitária.






É bizarro, doentio e repudiante. A violência é vendida num empacotamento em alta definição. Artistas e público se completam na exibição do esporte espetacular.


24/03/2012

Admiração

Admiração a um artista, um ator e humorista. Um ser humano valente e crítico sagaz do comportamento. Observador, usou o humor como ferramenta. Sua alma é privilegiada.
Marcou a vida dos brasileiros de várias gerações. Ironizou o Estado quando este nos ironizava dentro dos quartéis. 
Seus personagens - 209, dizem, tinham identidade própria, do Pantaleão ao Vampiro brasileiro, do professor Raimundo ao Alberto Roberto - Eu não garavo
Impôs vida própria aos seus personagens nos fazendo esquecer de quem os interpretava. Talento dos pés à cabeça. 
Respeitado pelos colegas, admirado pelo público. Consagrado na TV, no teatro e no cinema. Deixa saudade e o registro para a eternidade de sua passagem.
Se recupere em paz para uma retomada em uma outra oportunidade, inquieto, Chico Anysio.







17/03/2012

O anel, o pai e o garoto

Seguia o ano de 1966. Na memória, tudo em preto e branco, embora os sonhos sejam coloridos as lembranças reais não carregam cores. 
O garoto de 12 anos, baixinho e franzino, com um quê de timidez, gostava de jogar bola e sofreu com a campanha pífia do Brasil na Copa do Mundo daquele ano. Até chorou escondido. Fazia quadrados - era assim que se chamavam as pipas na época. Fazia com varetas de bambu, papel de seda e cola feita de farinha e água. Capucheta com folha de jornal que rasgavam facilmente com o vento um pouco mais forte. As vendia nas feiras de sábado e domingo para levantar uma grana. Adorava filmes, assistia a todos pela TV e quando podia ia para as matinês de domingo. Diversão certa nos cines Penha Palace, Penha Príncipe, São Geraldo, Universo, Piratininga e outros tantos. 
Adorava cinema, sonhava ser um dia um grande produtor, diretor de filmes. Escrevia pequenos roteiros para o teatrinho da escola, fazia desenhos em quadrinhos aproveitando folhas do caderno de desenho da escola, com personagens geralmente baseados em pessoas que conhecia - professoras, vizinhos, vizinhas, parentes, amigos e quem mais fosse. Trocava os nomes dos personagens para disfarçar, nada podia ser revelado, se não, a surra era certa. Sua mãe era uma fera, embora alegre e divertida, não perdoava qualquer tipo de desrespeito. Uma vez ele deixou escapar e se deu mal, muito mal. O diretor da escola queria até expulsá-lo. Seu pai, no entanto, era muito calmo, do tipo tranquilo e de poucas palavras e tinha uma inteligência racional fora do comum, muito além da maioria das pessoas. Dado às invenções vivia com um pedaço de papel e um lápis na mão, rascunhando alguma coisa nova. Mecânico de mão cheia, eletricista, pintor. Era muito hábil com as mãos e um contador de piadas sem graça quando bebia um pouco mais. Coitado, acabava virando a própria piada.
Pelo rádio, que ficava ligado o dia todo, o garoto ouvia muita música. Conhecia a programação da maioria das emissoras. Não existia FM e o dial, além do AM, dispunha de ondas curtas que raramente eram sintonizadas. O garoto curioso, de tempo em tempo, arriscava sintonizar alguma coisa, mas o ruído abafava o que se ouvia.
Época da Jovem Guarda de Roberto e Erasmo Carlos, Wanderléia e dos conjuntos. Eram assim chamadas as bandas de rock na década de sessenta. Faziam sucesso os conjuntos brasileiros que vestiam  ternos com paletós sem golas. The Jet Blacks, The Jordans, The Clevers que virou Os Incríveis depois, Renato e seus Blue Caps e as estrangeiros, como se dizia - The Animals, Herman's Hermits, The Rolling Stones e a mais querida por ele, The Beatles. 
Nos álbuns de figurinhas e nas fotos das revistas da época - Intervalo, a que mais lia, confundia, George Harrison com John Lennon, ambos tocavam guitarras elétricas, motivo pelo qual decidiu aprender violão. Achava-os parecidos. Só os identificou melhor no cinema quando assistiu "A Hard day's Night" que no Brasil teve o ridículo nome de "Os Reis do Ie Ie Ie" e depois em "Help", este colorido e com tela grande.
O garoto admirava também o jeito rebelde e anárquico dos Rolling Stones. A guitarra de Keith Richard em Satisfation era delirante e ele queria entender melhor o que eram as drogas e porque falavam delas em tom baixo evitando que as crianças ouvissem. Tomou um porre de caipirinha em casa numa tarde quando estava sozinho. Embriagado rabiscou as paredes da casa e da vizinhança, fez desenhos obscenos por todo canto, pixações sem sentido em todo lugar. 
A surra que levou da mãe foi proporcional ao escândalo repercutido no bairro. De garoto tímido e educado transformou-se num moleque filho da puta. Um pirralho metido a besta.
Deixou o cabelo crescer mesmo sob a repulsa da mãe, das tias e do diretor da escola. Aprendeu o sentido dos palavrões e os incluiu no vocabulário. Começou a fumar escondido roubando cigarros do pai. De excelente aluno, repetiu a segunda série do ginásio de propósito, por entender que assim se tornaria um verdadeiro rebelde, ao menos dentro do pequeno mundo que o cercava e, lá no fundo, também para provocar a atenção de uma menina loira, bonita, de família meio rica. Uma paixão recolhida que jamais recebera nada em troca. Enfim, o garoto se tornou em perfeito idiota, embora julgando-se o máximo. A arrogância e a insegurança estavam escondidas em sua alma de criança.
No filme Help, o baterista do Beatles, Ringo Star era perseguido por bandidos por usar um enorme anel com uma pedra vermelha. Este não saia-lhe do dedo por nada, por mais que os amigos tentassem não conseguiam livrar-se da tal jóia.
O garoto achou a ideia muito boa e lembrou-se de ter visto um anel parecido na gaveta do criado mudo da mãe dele.Ela quase não o usava.
Não deu outra, pegou o anel na segunda feira pela manhã sem que ela percebesse e na escola exibiu a tal peça no dedo da mão direita com orgulho. Mesmo sendo um anel feminino, de ouro com uma pedra que parecia um rubi em destaque, ele ostentava dando uma de machão. Até mesmo sua amada aproximou-se comentando o lindo anel parecido com o do Ringo Star. Finalmente ela o encontrara. 
Foi um sucesso na escola e decidiu repetir a dose nos dias seguintes.
Na própria segunda feira quase na hora do jantar, não se sabe bem a razão, sua mãe foi buscar algo no criado mudo e deu falta do anel. Todos em sua casa negaram o paradeiro com firmeza. Seu pai, seu irmão menor e ele próprio.
A desconfiança do roubo caiu sobre sua tia. A tia Benvinda, que o garoto tinha como uma segunda mãe, a mãe legal, a que se divertia com seu novo jeito de rebelde, a única entre todos que o apoiava. Ela tinha passado o domingo em sua casa com o marido e os filhos e a mãe dele achava a irmã sendo meio doidinha, poderia ter afanado a jóia tão preciosa.
O garoto apavorado ficou sem saber o que fazer. Se contava a verdade, apanharia ali mesmo, se devolvia às escondidas o anel no lugar sem que ninguém o visse, poderia chamar a atenção para si próprio, já que era o maluco da casa, ou continuaria com o sucesso na escola, mantendo a atenção de sua Vênus.
A semana seguiu até sexta feira e o garoto manteve-se calado ouvindo todos os dias as acusações dirigidas a sua tia querida, mas saboreando o sucesso na escola.
Nesses dias, próximo de casa quando retornava da escola, escondia em sua mala o anel, lambia o dedo para tirar a marca deixada por ele, uma vez que este entrava bem justo em seu dedo gordinho. Em casa estava aflito, inseguro, descobrindo-se um covarde.
Tudo iria ser revelado no domingo quando a família se reuniria para o almoço na casa dos avós. a tragédia estava por vir. Anunciada. 
No sábado pela manhã, bem cedo, devia ser umas sete horas, mais ou menos, o irmão procurando um lápis de cor na mala do garoto viu o anel e surpreso acordou a mãe e o pai que ainda dormiam. Coitado, todo orgulhoso. O garoto acordou com as palavras do irmão - Mãe, olha que achei!
O mundo caiu. A mãe aos berros cobrou o filho mais velho.  A verdade revelou-se em menos de 15 segundos e um dia antes do prazo. O pai, o calmo, levantou-se e pela primeira vez perdeu a cabeça, deu uma surra de gente grande no filho a ponto da própria mãe intervir para socorre-lo.
Em meio aos murros o pai dizia - nunca minta, nunca pegue nada o que não seja seu e jamais, jamais envolva outras pessoas em suas trapalhadas.
De rosto ainda inchado e com o corpo todo dolorido o garoto, na segunda feira seguinte foi para a escola sem o anel, sem o sucesso e sem a atenção da menina, obviamente revelada como uma interesseira.
Deixou a rebeldia de lado e até cortou o cabelo. Sentiu-se humilhado, envergonhado de si próprio. As palavras do pai doíam-lhe à alma, muito mais que as dores físicas pelo corpo franzino. Elas permaneceram zumbindo em seus ouvidos - Seja você mesmo, assuma seus erros e não pegue nada que não seja seu. Consiga o que quiser por esforço próprio. Seja forte, não se renda à covardia.
Muitos anos depois, mais de quarenta na verdade, num quarto de hospital, numa cidade do interior de São Paulo, pai e filho cruzaram seus olhares de forma derradeira. O sorriso esboçado pelo pai fez o garoto perceber que ele sentia orgulho do filho. 
O garoto chorou agradecido e o pai, despedindo-se, cerrou os olhos mantendo o sorriso nos lábios.
O zumbido das palavras permanecem nos ouvidos do garoto, hoje de cabelos brancos e mais seguro de si.



10/03/2012

Sorria, você está sendo filmado.


Sorria, você está sendo filmado.
Sorriam, nós estamos sendo filmados. E pior, sem nosso consentimento, o tempo todo e em todos os lugares. 
Portanto, meu amigo, cuidado, muito cuidado.   
Mantenha o sorriso no rosto e não demonstre preocupação. Siga em frente.


Cidadão ou cidadã, você pagou o IPTU e IPVA este ano? Não esqueceu as cartinhas acinzentadas na caixa do correio de sua casa, não é?
De certo sobrou também o resultado do excesso de euforia do final do ano, a gente acaba comprando coisas que nos empurram e depois nem lembramos direito o que foi e os cartões de crédito explodem e, invariavelmente, os pagamentos em três parcelas alcançam o mês de março e quem sabe, abril também. Uma vez liquidada a fatura, lá vamos nós para outra empreitada, isso não para nunca e assim vamos.
Vira e mexe vou a alguma empresa para uma visita técnica e na recepção, as mocinhas com seus penteados esquisitos, uniformizadas geralmente em azul escuro e com sorriso de Monalisa arrependida me dizem para me posicionar para a foto do cadastramento, isso depois de pedirem meu documento e terem feito alguma coisa com ele. Reparo sempre o olhar delas quando digitam o formulário pelo computador, concentradas, elas nem piscam e o sorriso desaparece levando junto por alguns instantes, a simpatia.
Fico pensando o que fazem com a foto. Para onde vão essas informações, o número do meu CPF, do RG e a foto que  nos roubam de surpresa. Aliás nunca me deixam ver como sai, nem me dão tempo para arrumar o cabelo ou colocar um sorriso no rosto. Ajeitam a minúscula câmera e rapidamente fotografam.
Quando vejo na minha caixa postal de emails nomes de empresas e pessoas que nunca ouvi falar na vida me oferecendo algum produto, me vem à mente essas situações.


Nada escapa nesse ponto.
Levei um susto recentemente quando fazia uma reclamação pelo telefone com uma atendente da NET. Depois de vários minutos esperando na linha e, claro, de ter atravessado a sequência dos "se" - aperte 1, aperte 2 e por ai vai até o aperte o 9 ou aguarde o nosso atendente, ouvindo ainda a música hipnotizadora que irrita e que dá sono ao mesmo tempo, uma voz de repetente  surge dizendo o seu nome, que, aliás, mal compreendi. O som eletrônico da música confundiu-se com a voz humana. Depois de algumas tentativas explicando o que eu queria e não sendo compreendido, ela me fez esperar mais um pouco e seguiram-se as interrupções. Isso levou cerca de dez minutos. Mudas, caladas, dava a impressão de que a linha tinha caído. Do nada ouvia de tempo em tempo - mais um instante por gentileza estou atualizando os seus dados, me pedindo um monte de informações pessoais. Tudo em nome da segurança.
O susto foi quando ela me disse o modelo da minha TV, a principal lá de casa. Não me lembro de ter passado essa informação a ela ou alguém mais da NET. De certo, o técnico quando fez a instalação me dedurou, isto é, me cadastrou como usuário do modelo tal, da marca tal em HD. Acredito até que saibam onde comprei e quanto paguei.


Dezeseis câmeras num espaço tão pequeno
Consultas nos cartões de crédito são terríveis. Os atendentes invadem nossa privacidade da forma mais natural. Querem saber o nome do pai, da mãe, da rua, dos vários números de documentos, se moramos em casa ou apartamento. Querem saber tudo com a justificativa aparentemente legal de segurança.
Da mesma forma os acessos nas contas bancárias pela internet são excessivamente codificados, quando me surpreendo com a capacidade de guardarmos tantas senhas e contra senhas.
Nessas horas lembro sempre de uma série antiga da TV, O Agente 86, que satirizava os filmes do agente secreto 007, os menos jovens irão se lembrar do simpático, Maxwell Smart e sua namorada, também agente secreta, 99. Ele para conversar com o seu chefe, lançava mão de senhas das mais ridículas e sempre sob o cone do silêncio. Eram do tipo: o abacate amadureceu antes do tempo, mas não caiu; o elefante marrom esqueceu a tromba em algum lugar e agora não sabe como pegar o amendoim.


Com números e letras a coisa é mais ou menos assim, engraçada e sem sentido e quanto mais sem sentido, melhor a avaliação - a ordem e a sequência só a gente conhece (será?) e as digitamos  nas janelinhas destacadas na tela de serviço, saindo tudo da nossa memória, pois não podemos escreve-las em lugar algum, em nome da segurança.


Radares nas avenidas me cobram multas por não ter respeitado o dia e horário proibido para o meu carro ou porque excedi um pouco a velocidade permitida na via que seria pública.
No Google hearth vi a foto do meu carro bem em frente à minha casa, aliás, passeei por ele localizando as ruas vizinhas de casa, reconhecendo meus vizinhos que saíram deformados nas fotos que foram enviadas posteriormente ao satélite.


É, com tantas senhas e tantas câmeras a meu redor, me sinto mais do que vigiado. Seria protegido? Além de Deus que me criou, tem um monte de gente que sabe tudo o que faço e por onde ando e cada vez mais vigiamos uns aos outros. Os que nos vigiam são vigiados por alguém também. 


Acho que vou abrir uma empresa de câmeras de monitoramento, o negócio parece promissor. Imaginem daqui há dez anos como estaremos.

Nos vigiam e nem damos conta. As câmeras se incorporaram na arquitetura urbana.


Os vigilantes vigiam e são vigiados. Tudo ao mesmo tempo.


Não é certo dizer "Sorria você está sendo filmado".
O correto seria "Sorria você está sendo televisionado", pois não se usa filmes nessas câmeras, elas são eletrônicas e digitais nesse admirável mundo velho.



04/03/2012

Coragem

Coragem, meu caro!  É o que precisamos o tempo todo,  eu, você e todos nós.
Não é fácil viver, não é fácil concorrer sem regras claras e muito menos sem a certeza do que alcançar. A sensação é de sobrevivência, somente por sobrevivência, em todos os sentidos. O prazer ficou pra traz há muito tempo e a alegria natural está cada vez mais distante.
Imagino o que passa na cabeça dos animais sem donos, os perdidos pelas ruas. A dor da fome desorienta e a falta de atenção e de carinho humilha a alma.

Fiquei observando dentro do carro enquanto estava parado no trânsito intenso um pobre cachorro magro, um bem esquálido e de olhar tristonho que mal podia caminhar. Cheirava de tempo em tempo alguma coisa pelo chão espantando-se com quem passava próximo a ele.
Acho que foram uns dois minutos de observação. Eu confortavelmente acomodado em meu carro, com ar condicionado depois de ter tomado um bom café da manhã e ouvindo o noticiário e ele, sozinho, com fome e sem ninguém pra dividir a aflição.
Com sorte consegui uma vaga entre os carros estacionados rentes à guia, coisa rara em São Paulo e ainda, sem zona azul. Desci e entrei no bar que ficava bem na esquina movimentada. Pedi duas coxinhas, dois bolinhos de carne e um grande sanduiche com duas salsichas, molho com pedaços de tomate e muita cebola. Alguns pingos vermelhos mancharam a manga da minha camisa quando peguei a comida.

__ Vai beber o que? Perguntou o balconista gordo com jeito de mal educado.
__ Nada, obrigado. É pra viagem. Quanto é?
__ Treze real.

O sujeito me deu o troco de quinze, as duas moedas de um real  foram parar no bolso da calça e saí sem me despedir. Como sempre, atrasado.
Estava o cachorro às voltas com um saco de lixo grande e preto próximo ao poste, resistindo aos ataques desesperados das patas do cão sem unhas, faminto, sem dono. Os restos de comida de dentro do saco o atordoavam.
Sentindo o cheiro vindo do outro canto da calçada e em meio aos transeuntes apressados o pobre animal virou-se e se deu conta de que alguém vinha em sua direção carregando um banquete.
Humildemente baixou a cabeça e se colocou em minha direção. Por uma fração de segundos cruzamos os olhares - olhos nos olhos. A linguagem da alma não precisa de palavras, a natureza nos concede a comunicação por pensamentos. O afeto se estabelece espontaneamente e ela sorri.
Deixei os salgadinhos próximos ao poste bem ao lado do saco de lixo preto e retornei ao carro.
Mal me sentei travando o sinto de segurança e ainda olhei para a mancha vermelha na manga da camisa - puta que o pariu, pensei alto. Voltei-me para o cão - uma das coxinhas e um bolinho de carne já tinham ido. A fome, de certo, era grande.
Consegui sair dali até que facilmente e segui o meu caminho.
O dia foi normal, disse não à meio mundo. Me rogaram pragas, assim como eu os roguei. Me disseram nãos e sins, como todos os dias acontece com todos.
No dia seguinte passei pelo mesmo lugar. Outro saco de lixo preto estava amontoado próximo ao poste e dentro do bar vi o balconista gordo atendendo com sua cara fechada um cliente, servindo a este um café. 
Dessa vez o cão não estava lá. Entre, eu no carro e o gordo do balcão, pela calçada seguiam os apressados. 
Olhei para a manga da camisa que reluzia o branco que refletia a luz do sol forte da manhã quente de mais um dia de sins e nãos.
Ouvi o comentarista no rádio dizer - vamos em frente meu caro, há de se ter coragem.