27/09/2015

O homem que acordou morto e nem percebeu

Uma história baseada em fatos. Tão concretos, tão verídicos quanto eu e você estarmos vivos neste momento gozando da mais límpida lucidez. Você pelo menos. 
Por Romeu Paris - Atibaia/SP - Brasil
 Cabe um esclarecimento inicial. Trata-se aqui de uma singela homenagem em forma de caricatura literária a qual dedico a uma pessoa de convívio diário desde os meus primórdios e que aprendi a admira-la do jeito que ela é, principalmente pela sua disposição em querer ver o bem antes de qualquer coisa, mesmo onde ele aparentemente não exista, modo que às vezes é confundido com estupidez por algumas pessoas e até mesmo por ela.
Uma pessoa que respeito e que ergo as mãos com fervor para aplaudi-la. No entanto, confesso que me desperta uma ponta de preocupação, um certo temor de natureza íntima relativo à sua saúde, saúde mental, no caso. Espero estar enganado. 
Dedico este relato a mim mesmo.
Imagem - Google
 Para quem nunca ouviu falar de Ohlif Uemor Sirap, digo tratar-se de um personagem admirável, de um grande homem, apesar da baixa estatura e jeito franzino. 
Foi criado com o leite das cabras montanhesas búlgaras e quando adulto, por divergências com autoridades locais, exilou-se no Brasil. Isso pelos idos dos cinquenta e poucos do século passado. 
Desde a juventude Uemor Sirap se indispunha com o regime  do país que na época rendia-se a austeridade soviética e já com 29 anos bem vividos e com um bigode daqueles que dão medo até em cristãos, deixou a mulher e os dois filhos pequenos em Stara Zagora, cidade natal, para viver na clandestinidade e dedicar-se com os amigos do peito e de fuzil ao que chamavam “ALN - Ação Libertadora Nacional" um grupo de idealistas obcecados pelo anti-comunismo e pela liberdade que iria mudar a história do país para sempre. 
O plano era destruir com uma explosão descomunal a sede do governo em Sófia, um enorme palácio de arquitetura provençal que ocupava um bairro inteiro, para iniciar dessa forma a desestabilização do governo e clamar o povo para uma nova ordem que vinha do mundo livre. 
Pode-se dizer que o plano foi realizado mas o objetivo não atingido por completo. O violento atentado ocorreu de fato e deixou quase uma centena de vítimas fatais e mais outras mil e setecentas gravemente feridas. Entre os mortos estavam o próprio presidente do partido e do governo, Vladmir Pajvid, sua esposa e as quatro filhas do casal. 
No entanto, a ação não resolveu a questão da repressão e nem obteve a simpatia do povo, pelo contrário, após o ataque o regime tornou-se ainda mais bruto, mais pau-de-fogo nos Zé Roelas. Tanques e exércitos chegaram de  Moscou impondo ordem ostensiva pelas ruas de Sófia e pior, sob o aplauso popular. O plano sem dúvida furou. 
Restou ao grupo a dissolução da ALN e a fuga dos rebeldes para cantos diferentes do planeta. No caso deles a saída foi pela direita. 
Uemor fugiu da Bulgária pelo sul e atravessou a Grécia de bicicleta passando-se por um camponês desvairado com cara de bastardo de pai e de avô e a nado atravessou os mares mediterrâneos e as ondas do oceano Atlântico, alcançando meses depois as praias de Maceió nas distantes terras brasileiras da América do Sul. O ano era 1954. 
Cansado, com fome e com sede ele acreditou ter encontrado as Ilhas Caimã e por percebe-las acolhedoras misturou-se aos nativos por quase dois anos, quando se deu conta de onde estava realmente. 
Vixi!!! Caraio!!!  
O vocabulário de Uemor era ainda bem tosco nessa época. 
Intrépido, o imigrante acabou se metendo em mais encrencas. Uemor Sirap da noite para o dia, tornou-se um perseguido “não-político” jurado de morte e das bem morridas, só por ter dirigido galanteios à filha mais nova do coronel De Mello, o então prefeito da cidade e dono da metade das terras da região. A outra metade, que fique bem claro, era dividida em lotes iguais que pertenciam aos seus quatro filhos. 
Irado o coronel pôs a tropa à caça do homem do bigode grande, de fala esquisita, o tal que queria bolinar sua cabritinha mais tenra. 
Etcha corno, fela da puta! Mata do lazarento!
Uemor, afoito se escondeu no Costa do Marfim, um navio africano que aportara por aquelas bandas dias atrás e nele ficou escondido por quatro dias e quatro noites, debaixo de uma lona fedorenta, sem água, sem comida e com uma dor de barriga infernal, até que a embarcação finalmente partiu em direção ao mar sem fim. 
O clandestino foi descoberto horas depois por um marinheiro que mijava na lona toda a cachava que bebera em terra. Uemor foi açoitado com noventa e sete chibatadas por ordem do capitão e encaminhado à ponte para ser jogado aos tubarões quando salvo pelos gritos afoitos de ...Pare com isso!  ...Que porra é essa…? de Odília Ébano, uma negra de trato fino a quem tempos depois o moribundo viria a se amarrar de corpo e alma.  
A recíproca ocorreria da mesma forma, Odília rendeu-se ao charme intelectual do homem do bigode grande assim que o viu. O corpo ferido pelas chibatadas, o suor misturado ao sangue, isso tudo excitaram a mulher elegantemente vestida de legítima francesa. 
Dois dias depois casaram-se sob os ventos dos mares do sul com a autoridade do Capitão Manoel de Carlos Soares e pelas bênçãos do Capelão, Moacir de Alcares Fernando e, claro, isso após a regularização do clandestino na embarcação que gozava agora da condição de passageiro de primeira classe, situação promovida pela linda esposa negra, abastada e que insistia no leve sotaque francês. Era um tal de mon chéri daqui e mon chéri dalí o tempo todo. 
Desembarcaram após três dias de núpcias na cidade do Rio de Janeiro, numa tarde de sábado ensolarada para viverem suas vidas em liberdade tropical. Uemor, finalmente encontrara a paz. 
A senhora Odília Ébano, respeitada viuva e herdeira de uma fortuna que cintilava aos olhos dos interesseiros e das invejosas, riqueza obtida do casamento com o Conde D’Bordeaux, falecido de morte sem causa aparente e que agora saboreava a vida de esposa de Ohlif Uemor Sirap e tornara-se uma empresária de respeito que entre uma viagem e outra ocupava-se na administração dos bens, entre eles o bordel "Santa Maria dos Aloprados", um local de encontros fortuitos e de laser erótico, mais discreto e visitado do sul do hemisfério sul, cuja localização tão privilegiada, próxima ao Palácio do Catete, possibilitava acenos ocasionais do próprio presidente Vargas para com ela e que ela jurava de pés juntos, dependendo a direção do vento, sentir o cheiro das baforadas dos charutos presidenciais.  
A clientela do bordel esmerava-se na frequência, eram políticos dos mais diversos pontos do Brasil, de juízes de todas as instâncias, intelectuais de esquerda, de centro e de direita, ministros de estado, cúpulas religiosas ortodoxas ou não, desde as mais tradicionais até os novos-pentecostais. Samaritanos de toda ordem, meninas e meninos de rua, do Exército da Salvação, de marinheiros mercantis, de médicos, dentistas, engenheiros, artistas do rádio e da televisão, a turma do Cassino da Urca e outros tantos mais. Era um show diferente todas as noites e nada de baixarias. A coisa seria mesmo. 
Agora, na condição de homem rico e com tempo disponível, Uemor passou a ler de tudo que lhe vinha às mãos. Queria compreender a língua de sua nova terra na essência. Quis dissecar a sintática, a ordem morfológica, os substantivos, os advérbios, os transitivos diretos e indiretos, as preposições, os pingos nos “is" e o que vem antes do p e do b
Até que, encorajado pela esposa, decidiu ser um escritor, mas um de reconhecimento internacional, um renomado escritor de verdade.
Batizou-se artisticamente com o nome de José Pedro de Souza ou JP de Souza. 
Vendeu milhões de edições pelo mundo. Livros esotéricos, de auto-ajuda, de receitas de quitutes, o famoso B A Bá da Bomba Caseira, de como fazer seu próprio explosivo em casa. Este que foi um sucesso na literatura revolucionária. Escreveu livros de charadas, de passa-tempo e mais recentemente, os manuais de marketing eleitoral para políticos de partidos que querem se passar por progressistas moderninhos de caras inteligentes para enganar um país inteiro. Um sucesso editorial estrondoso na América latina, principalmente. 
Odília, influente nas cercanias, fez que fez até conseguir eleger o marido para Academia Brasileira de Letras, antes mesmo do Sarney. Depois de tantas perseguições, riscos de vida e de morte, quem diria, Uemor tornou-se um imortal. 
Porém, a vida prega peças a todo momento e de súbito óbito ele se foi e nem pôde se despedir da amada, Odília. O tumor no ânus que o perseguia a anos não lhe provocava a ira e nem tampouco as dores das feridas oriundas dele o aborreciam, Uemor suportava tudo como um forte. O coração foi quem o traiu. Simplesmente parou de bater naquela noite.  
Pum Pum… Pum Pum… Pum… Pum Pum… P… 
A morte é implacável, leva até os imortais.  
Uemor deitou-se são na noite de sábado último e não mais acordou. 
Ou como diria o vereador da cidadezinha no interior: 
 
"Dormiu vivo para acordar morto" 
Siga em paz, Ohlif Uemor Sirap ou JP de Souza! 

* 1925 
† 2015


20/09/2015

A luz

Ela concentrada e projetada num feixe potente atravessa o espaço aparentemente vazio. Tem a personalidade definida e mostra por onde passa e de forma silenciosa a vida que está à nossa volta a qual insistimos em renegá-la. 
Por natureza apreciamos somente aquilo que vemos ou tocamos, vale sim dar um pouco mais de atenção ao que sentimos, pois é uma maneira interessante de se enxergar. 
Essas coisas invisíveis nos tocam apelando pela nossa atenção, mas nós arrogantes não nos damos conta.


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