28/02/2015

Spock jamais experimentaria um cigarro

Espaço: a fronteira final. Estas são as viagens da nave estelar Enterprise. Em sua missão de cinco anos... para explorar novos mundos... para pesquisar novas vidas... novas civilizações... audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve.
O ator Leonard Nimoy estava doente havia algum tempo. Parece que ele foi fumante a vida toda, assim como eu fui.  
O Spock jamais experimentaria um cigarro. 
Nunca imaginei como reagiria com a notícia da morte do ator. Foi mal, me pegou de supresa, como se eu tivesse sabido da morte de uma pessoa muito próxima, um amigo. 
Nerdisse? Hoje sim. Se foi o ator, mas o personagem ficou, ponderei. 
Ainda criança, devia ter uns 11 ou 12 anos conheci a série Jornada nas Estrelas. Aquela engenhosidade toda travava minha cabeça. Eu pirava.
Acho que vi todos os episódios da série, nem sei quantos foram ou quantas vezes assisti a cada um deles. 
Depois chegaram as versões para as telas grandes, vi todas, até a mais recente produzida em 2013. 
Nem sei quantas vezes ouvi o: VIDA LONGA E PRÓSPERA. 
A primeira vez foi em 1966 ou 67, eu acho. No canal 4 - TV Tupi, acho, e com certeza em preto e branco. 
De cara vibrei com o futurismo do enredo, o teletransporte era incrivelmente maluco. Capitão Kirk, McCoy, Senhor Sulu, Chekov, tenente Uhura Federação, todos brilhavam nos meus sonhos. 
Mas o cara mesmo era o Spock - um híbrido vulcano e terráqueo. Que raio de orelhas eram aquelas? Por que ele nunca sorria? O que era lógica? E o xadrez triplo que ele vencia do computador? 
Mãe, o que é computador mesmo? 
Jornada nas Estrelas abriu minha cabeça. 
Deixo aqui minhas considerações sobre a morte do ator Leonard Nimoy, pelo caráter e a força que ele impôs ao personagem, Senhor Spock, criado por Gene Roddenberry. 
Tenho certeza que o escritor, por mais criativo que tivesse sido, jamais teria imaginado a longevidade de sua criação e nem tão pouco considerou o carinho que um dos personagens conquistaria ao longo dos anos pelo grande público. 
O ator se foi, mas de presente ele nos deixou o Spock, que é eterno. Pelo menos enquanto eu existir. 
Vida longa e próspera, Sr Spock.


22/02/2015

Urgente, Cidade Atenta

Imagem - Google 
OS ZUMBIS EXISTEM
Não gosto dos programas policiais da TV. Eles me deixam ansioso e deprimido. 
As reportagens apresentadas neles escancaram o aspecto mais negativo da natureza humana, uma coisa feia de se ver em alta definição: o ódio na plenitude e os limites da maldade. 
Esses extremos parecem ter se desenvolvido somente nos humanos. Acredito que outras espécies não tenham a mesma deficiência. Não matam e nem judiam do próximo por mera satisfação. 
Enfim, evito assisti-los e até os considero pouco ou nada jornalísticos, pra mim são shows de reportagens dramáticas, uma espécie de Reality`s tão em moda hoje em dia. 
Mas, confesso que às vezes relaxo a guarda e me pego grudado em um deles. Coisa de doido ou da traição do inconsciente de um profissional de TV. 
Um dia desses assisti a um deles que apresentou uma reportagem mostrando a barbarie na condição mais absoluta possível.  Quinze homens, alguns casados, inclusive, onze adultos e quatro adolescentes, que estupraram uma menina de 13 anos. Uma criança que esteve por horas nas mãos sádicas de quinze homens ávidos por sexo, num terreno baldio nos fundos de uma escola estadual. 
Disse o vizinho resignado na reportagem: Graças a Deus ela sobreviveu!  
Como assim, Zebedeu? Acho que nem Deus saberia dizer como ela e a família sobreviverão com as lembranças da violência pelo resto de suas vidas. Um calvário dos mais injustos, pensei. 
A legenda na tela da TV destacava a matéria com letras vermelhas, num fundo azul e branco:  Estupro coletivo em Escola Estadual. 
Em relação ao programa que há tempos não via, ele continua o mesmo: completamente fiel à fórmula, regado de opiniões do apresentador e muito repetitivo. 
E em relação aos estupradores, indignado, me perguntei a razão da tamanha brutalidade. 
Hoje ainda procuro palavras para classificar as quinze "deformações", talvez elas estariam mais próximas dos zumbis do que propriamente dos humanos. 
Pai, perdoem, eles não sabem o que fazem? 
Me veio a frase lá dos tempos do catecismo. A memória, quando provocada, trás à tona referências da nossa formação. 
Como deixei de crer no além e para mim as religiões se tornaram um mal do qual a humanidade um dia se libertará, sem pretender ofender crente algum, me sinto agora livre para considerar a possibilidade de extermínio de todo e qualquer tipo de aberração que tente se passar por gente. Por injeções letais, de forma sumaria e rápida. 
Esses quinze elementos químicos de íons negativos, por exemplo, depois de capturados e rigorosamente constatados autores do crime, seriam de pronto encaminhados para Câmaras Letais, sem qualquer intervenção jurídica ou apelações de entidades de direitos humanos, até porque, dentro desse novo contexto, não os consideraríamos humanos. Portanto, sem qualquer direito. Da mesma forma como fazemos com os ratos e as baratas.
Em nome do que ou de quem não fazemos tal coisa? 
A resposta me vem na velocidade da luz, também por influência da formação católica: do negócio. 
Essa solução seria considerada demasiadamente reacionária, coisa de coxinha, da classe média, da elite branca que está mais preocupada com a gordura localizada e com o tamanho dos seios da vizinha do que qualquer outra coisa. Pensamento de quem diz: mata logo e pronto.  
Além de ser uma proposta encharcada de ódio, possivelmente do mesmo ódio dos estupradores e sem a consideração da fé que impõe que somos todos irmãos perante a Deus. 
E ainda complementaria o meu inquiridor com dedo em riste:
Não se constrói uma sociedade através da violência, pois violência gera violência. E todos, temos o mesmo direito, o direito a um julgamento “justo" baseado nos termos da lei. 
Fica para mim a questão: quem são todos? 
Seriam mesmo humanos as quinze aberrações que vi na reportagem?  
Hum… sei! Então é pra ser hipócrita? 
A hóstia regenera a alma, limpa meus pecados, mas me põe de joelhos diante de um Deus? 
A gente sabe que coisas jurídicas não funcionam bem, ainda mais no terceiro mundo. Quem garante que os quinze anômalos não estarão circulando pelas ruas em poucos anos, livres pra qualquer coisa e por entre nós? E ainda nas bases da lei. Os quatro adolescentes não ficarão detidos por mais que um ou dois anos, isso já temos certeza. 
Não sei onde vamos parar e nem com quem buscar as respostas. Me sinto sozinho nessas horas, ansioso. Só sei que vou me esforçar para não assistir tais programas policiais. Eles me fazem muito mal.  
Mãe, as aberrações têm cura? O Pai disse que sim! 
Oremos, então, meu filho!
Deus, dá uma força aí.
A coisa tá pegando por aqui.
Ninguém entende mais nada. 
Sabe os da espécie inteligente?
Aqueles que você criou no Éden 
e ainda cantou de galo? Lembra? 
Pois é, bingo! 
Tá dando tilt no sistema. 
Tá quase fora do AR.
Dá um jeito na bagaça, pelo amor de Você.
Amém pra todo mundo!



21/02/2015

Eu sou Voluntário! E você?

Imagem - Google
Estive na Rua Voluntários da Pátria em Santana, zona norte de São Paulo e acabei lembrando de outro time de voluntários: os da Copa. 
Parece assunto fora de tempo, não é? Mas a gente se lembra de coisas bem mais antigas que isso. Me diga que não! 
Para mim esses caras eram uma mistura de inocentes patriotas, radicais militantes-fundamentalistas e, principalmente, interesseiros afim de farra que encontraram uma oportunidade de estar perto de gente famosa. Em resumo, um bando de babacas.
Mas eles eram voluntários e por serem da categoria, cujo nome inspira confiança e respeito, prestamos a continência. Afinal, consideramos as centenas de voluntários e voluntárias de causas, vamos dizer, mais nobres. Esta bem que poderia ser uma.
Me perguntei: por onde andam os voluntários da Copa? Quem deles votou na Dilma e quem votou no Aécio? Existiriam nulos, brancos e justificados entre os voluntários de 2014? Ou seriam eles extra-terrestres?
Não fosse o decepcionante sete a um, de certo, vereadores engajados teriam propostos nomes para outros logradouros, homenageando a categoria pela coragem, desenvoltura, obstinação e dedicação de tempo de suas preciosas vidas imaculadas à causa pública.
Eu sou Voluntário da Copa e você?  
Como um: Doe ouro para o bem do Brasil!
Aqui no Belenzinho temos o Viaduto Guadalajara, uma enorme e grotesca construção que atravessa por sobre uma das avenidas mais movimentadas da região, a Radial Leste, sobre outras duas ruas bem mais tranquilas e ainda sobre as linhas do metrô e dos trens que vão para Mogi das Cruzes. 
Ganhou o nome de Guadalajara pela vereança engajada da época, numa homenagem ao povo da cidade mexicana do mesmo nome que acolhera de forma simpática o escrete canarinho do presidente Médici durante a Copa de 70. 
Dadá Maravilha estava lá a mando do próprio general. E ai daquele que não obedecesse o homem.

POIS É, EM 2015 AS COISAS SÃO BEM DIFERENTES 
Imagem - Google 
Em 1950 tomamos de dois a um do Uruguai jogando no maior estádio de futebol do mundo, construído com dinheiro público para a Copa daquele ano. Bem no coração da capital federal quando os mermãos nem haviam nascido. 
Até hoje lembramos do episódio como uma tragédia nacional, como tivéssemos perdido (se é que ganhamos) a guerra do Paraguai, apanhando em campo de dois a um do singelo Uruguai. 
Tipo uma bomba atômica lançada por um Enola Gay paraguaio-chinês-uruguaio, aniquilando com um único tiro, milhões de brasileiros. O país ficou sem entender nada. 
Maracanaço, chamaram o silêncio das duzentas mil pessoas que lotavam o magnífico estádio.
Os sete a um levados da Alemanha em 2014, no entanto, a turma levou de boa, virou gozação. Algumas crianças choraram, mas logo passou. 
Na ocasião os estádios ficaram "prontos" em cima da hora e foram construídos para o grande evento a custos no mínimo "diferenciados", a partir de empréstimos públicos a serem reembolsados sabe-se lá quando e de que forma. 
A festa foi organizada por um trio mais que voluntarioso, Fifa, CBF e Governo do Brasil. Parabéns!
Mas não deu, perdemos em casa mais uma vez. Enchemos a cara e meses depois reelegemos a presidenta e logo depois vibramos com a escola vitoriosa que homenageou a ditadura amiga do ex-presidento.
O governo patrocinador da Copa sumiu, os oposicionistas malacos, estranhamente, nem deram as caras. Empreiteiras e políticos, claro, levaram parte da bolada e a CBF e a FIFA quase todo o confeito. 
Não sobrou vestígio da radiação pois não houve explosão alguma, os átomos se mantiveram íntegros para alegria da voluntariosa militância.
Esquecemos rápido, nós terráqueos, talvez porque a coisa hoje esteja tão mais complicada que nem valeria a pena ficar remoendo picuinhas. Perdendo tempo com futebol, quando que diariamente aparecem escândalos muito maiores. Que bobagem!
Erramos todos com o "Imagina na Copa", não foi? Feio, né?
Séculos separam o mês de julho para cá, então por que lembrar dessas bobagens?   
Soube que os voluntários da pátria de 1860 da guerra do Paraguai não eram tão voluntários assim. Em suas fileiras via-se em boa parte, escravos e bêbados capturados nas noites quentes de Paquetá que amanheciam com uma bela espingarda nas mãos. 
Tome tonto!
A história é fantástica, ela mostra o quanto o povão é enrolado quando os governos precisam dele.
Gostaria de viver num país onde não precisasse ficar ironizando atitudes patrióticas. Nascido e criado aqui, adoraria pendurar uma bandeirinha verde-amarela na porta de casa. Por orgulho, por satisfação. Por honra. 
Não dá. Nem pensar ser um voluntário da pátria que pariu nenhuma. Ainda mais por aqui que está cheio de adoradores de grana e de poder. 
Cambada de Voluntários da Copa do 4˚ Reich.

19/02/2015

Vida de Cão

Do site CONTI Outra Artes e Afins - 16fev15
www.contioutra.com
O fotógrafo Ralph Hargaten de Hamburgo, na série VIDA DE CÃO, exibe cães com expressões realmente surpreendentes. 
É impressionante a personalidade expressada pelos cães como também foi a capacidade do artista em flagrar o momento exato do olhar deles nos registros.
O fundo preto e a luz pontuada contribuiu para o resultado. 
Parecem humanos.








Demais! 
Se pudesse daria nomes para cada um deles: Oscar, Rui, Luis, Mário, Carlos, Davi, Nelson, Daniel e Clóvis.

17/02/2015

A cara da gente

Portinari (s)
Não importa a cara que a gente tenha, a gente se acostuma com a nossa cara desde a primeira vez que a vimos no espelho. Fica na memória a boa ou má lembrança.
Existem vários tipos de caras. Tem a cara de pau, que é bastante famosa, a cara de burro quando foge, a cara de paisagem, cara de cu e outras tantas. 
Tem a cara falsa, a cara linda, cara limpa, a famosa cara de merda e a dos inocentes. Sem esquecer da antiga cara pálida, a dos brancos. Todo mundo tem sua cara, até quem não é gente. 
Caracas, tem a revista Caras! 
Não importa qual a cara que você tenha, todo mundo tem sua cara. Eu a minha e você a tua. 
A mais vista em todos os lugares do mundo é a cara de pau. Parece que todos, além da sua, tem a dela. A de pau. 
Acho que é a segunda cara de todo mundo. Ou a primeira. 
  

16/02/2015

A triste história de Docimar Aparecida

DOCIMAR SE REELEGEU 
Arte Latina - MAL - Foto do blogueiro
Nem pela a hipótese mais absurda se imaginaria que Docimar pra vida pública partiria. 
Por influência de Luis, amigo de Zebedeu, o posto máximo ela escolheu de um lugar que fica a sudoeste do Corumbá, quase na divisa com o lado de lá. 
E nem de longe se pensaria que eleita ela seria. E olhe que foi na concordância da maioria. Ninguém questionaria. 
Deixou o frentismo do posto de gasolina do tio, o mangueirão do beira-rio e ao partidão ela aderiu, sim, aquele que o amigo também seguiu. 
Candidata, escolhida pela ficha lida e com o dinheiro de vocês, boa a campanha ela fez:  prometeu, prometeu e se elegeu. 
Pois assim se deu, Docimar Aparecida, totalmente convencida pra prefeita se elegeu. 
Mas depois do pleito ela tremeu com aquilo que se deu, por fim, não deu. 
Para o povo que a elegeu sua mãe não entendeu onde se meteu. De beata foi pra vida, sem entender o quê e o por quê que se deu. 
Até os mais chegados não suportaram o surto,  os que ficaram só foi pra tomar o furto. 
Docimar aprendeu, tão logo amadureceu. 
Manipulou, articulou, cumprimentou e se aliou, mas não surtou. 
E a democracia outra vez se deu e Docimar se reelegeu. Por questão de tempo, o povo esqueceu e com ela se envolveu. 
Não com mesmos números, mas com o suficiente. A regra no lugar a sudoeste do Corumbá era doente. 
Coisa demente de gente que mente a democracia que elege indecente. 
Docimar Aparecida de Nogueira da Escola de Samba é Porta-Bandeira. 
Ela que não marque bobeira. 
Se fosse homem teria virado lobisomem.


15/02/2015

Carnaval na TV

Imagem - Google
Por mais que as emissoras de TV se esforcem na cobertura do Carnaval pelo Brasil, elas não conseguem levar ao telespectador a mesma emoção de quem assiste esses eventos nos próprios locais onde eles acontecem. O som, as cores e a alegria presentes, por si, encantam muito mais. Até mesmo aos menos atentos como eu.
Digo isso de carteirinha, pois, pela minha profissão, participei e participo ainda, eventualmente, dessas transmissões e da mesma forma pude presencia-los, nos raros momentos de folga, "in loco".
Evidente que, por maior que seja o esforço, não se espera que se obtenha a mesma qualidade de emoção entre os dois modos. Óbvio: uma coisa é estar presente e outra é assistir de longe. Mas a diferença de sensação entre elas é muito grande e a TV está perdendo feio. E pior, não se nota nada de melhora no modelo de transmissão, todo ano é sempre a mesma coisa.
Difícil acreditar em quem suporta ficar diante da TV assistindo aos desfiles e trios elétricos, por exemplo, por mais de meia hora. O sono ou o impulso de pegar o controle remoto vem na mesma proporção de querer desligar a TV para ir dormir ou navegar na Internet. Aliás, notamos que os portais são mais despojados das fórmulas "consagradas". Estão na frente atraindo mais e mais público a cada ano.
Indiscutíveis são os requintes de tecnologia aplicados pelas emissoras nas transmissões. São fantásticos e muitas vezes, "seguram" o espetáculo pelo visual, apesar do conteúdo.
Mas o conjunto não acompanha o detalhe: uma hora é áudio abafado ou entrecortado, outra ele está saturado e indefinido. Nem sempre a sequência das imagens facilita o raciocínio e acompanhamento do telespectador e algumas vezes elas são incoerentes das falas dos comentaristas. 
São difíceis de engolir, salvo raras excessões, as lamentáveis participações de apresentadores, repórteres e convidados que encabeçam o que seria "O Grande  Show". Engraçadinhos, inseguros por estarem fora de seus habitats, são pinçados nessas oportunidades à condição de supra íntimos dos eventos que apresentam. Tentam passar a imagem para o público como se fossem profundos conhecedores e entusiastas do tema, sendo que qualquer um nota a tremenda dificuldade e enrascada em que se encontram. Chega a dar dó.
A TV aberta precisa se reformular para voltar a ser atraente. A concorrência é cada vez maior e não é porque ela é grátis e disponível no AR que não poderá um dia virar poeira. 



14/02/2015

O CRIME DO EDIFÍCIO CONDESSA DE PIRAJÁ - Parte final

Do capítulo anterior: 
Dr Décio fechou o jornal de súbito. Deixou o charuto apoiado no cinzeiro, levantou-se e por um bom tempo manteve-se em silêncio, pensativo e certamente, perplexo. Olhava fixamente paras as bromélias, hortênsias e crisântemos do simpático jardim do casarão da Rua Independência. 
__ Apartamento, 812 do Condessa de Pirajá na Benjamim Constant? __ Ontem? Não é possível! 
continua… 
Apesar das pernas longas ele caminhou a passos lentos até a sala de estar onde se encontravam a esposa e as meninas, Martha e Márcia. Elas riam de alguma coisa que a mãe dizia. Maria de Lourdes sempre foi carinhosa com as filhas. 
O riso das meninas de certa forma o irritava, no entanto, manteve-se calado.
Olhou para elas, esboçou um sorriso de pai, sentou-se na poltrona ao lado do sofá onde estavam a esposa e as filhas e dois minutos e meio depois iniciou a conversa dando à prosa o ar descontraído que lhe convinha naquela momento.
 
__ Darling, você me disse que esteve na cidade ontem. O que foi fazer por lá? 
__ Ah Décio, lembra que eu falei? Fui até a Cassio Muniz para ver aquela máquina de costura do reclame. Linda, adorei! Ela faz até cerzidos. Depois fui ver as novidades no centro, vi cada tecido lindo na R. Monteiro. Pensei em você! 
__ Foi pela manhã? Protegeu-se do frio, pelo menos?
__ Ah sim, querido! Saí de casa, acho que eram umas dez e meia e voltei lá pelas duas e quinze, mais ou menos. A cidade estava cheia, parecia natal, mesmo com esse frio. Eu estava com aquele meu casado bege, sabe? Parece que teve algum acidente com bondes, acho que na Avenida da Liberdade, sei lá… Ouviu falar alguma coisa, meu bem? Tive até que tomar o 21 na Praça Clóvis. Nem almocei. 
Procurando ser convincente. 
__ Sim, ouvi dizer! Um choque entre bondes que descarrilaram. Mas não foi nada demais.Amenizou, Décio.
__ A Cassio Muniz é na Benjamim Constant, não é? Perguntou ainda. 
Breve silêncio. 
__ Sabe que eu não sei o nome da rua, Décio. Acho que sim, não sei direito. Você sabe que eu tenho dificuldades com essas coisas de nomes de ruas. 
Falava com o marido penteando os cabelos das gêmeas. 
Dissimulada. Pensou Dr Décio sobre a esposa. 
Depois de um minuto pergunto a ela: 
__ Encontrou o que procurava, Darling? 
__ Ah! Não, não, querido. Não comprei nada. Anda tudo tão caro por esses tempos, não é mesmo, querido? Deixei para depois, talvez aproveite alguma liquidação! 
Dr Décio levou a mão direita ao bigode como num cacoete inconsciente. Alisou os fios de um canto, alinhou os do outro. Lentamente,  pensativo, olhando para a estante de imbuia à sua frente, cercando cada detalhe dos objetos de decoração dispostos nele. 
O porta retrato, ligeiramente fora de centro o incomodava. Exibia em preto e branco e nuances de cinza, a felicidade de uma família estruturada, de bem: os Rodrigues e Alves. Sentados, um pai austero ao centro, a mãe dedicada, submissa e feliz, pelo lado direito deste e as duas filhas que não esboçavam naturalidade nos sorrisos, ambas em pé, imediatamente atrás do casal. Martha apoiava a mão esquerda no ombro direito do pai e Márcia, a mais nova, fazia o mesmo e com um pouco mais de carinho, no ombro da mãe. 
O carrilhão sustentava o relógio Herweg, cujo som cadenciado e de mecanismo absolutamente preciso, estabelecia um compasso sereno ao ambiente que se fazia apreensivo sem que se dessem conta desta condição sonora.
O silêncio de dois ou três minutos foi interrompido quando Dr Décio levantou-se dizendo:
 
__ Vamos! Vamos ao Parque Dom Pedro, esposa e filhas. Vamos aproveitar o ar fresco da manhã deste inverno que se faz rigoroso, mas bastante saudável aos pulmões.


III
 

Domingo, 19 de agosto de 1952
 
Oito horas e dezessete minutos de uma manhã cuja temperatura apontava 11˚C. 
__ Vamos! Vamos à missa, esposa e filhas. Padre Conde nos espera, não podemos atrasar. 
Maria de Lourdes, tenta ser natural mas demonstra certa apreensão, ainda mais quando percebe o olhar do marido que para ela já parecia desconfiado.  
Na verdade Dr Décio há dias vinha observando a esposa muito ansiosa e nitidamente um pouco mais, desde sexta-feira última. Os olhares cruzados foram raros desde então e muito rápidos. 
Nunca foi assim! Disse para si mesmo, Dr Décio. 
Ela conduz as filhas até o automóvel, um Ford modelo 1948 todo preto, de quatro portas, de parachoques, retrovisores e adornos, tão bem cromados que mais pareciam espelhos reluzentes. A placa amarela estampava a data do casamento do casal: 12-01-39. Polido ao extremo e estacionado de forma rigorosamente alinhado à calçada em frente ao número, 17 - portão de entrada do casarão da Rua Independência. 
Dr Décio com as chaves na mão direita, deu a volta por trás do automóvel até alcançar a porta do motorista. Maria de Lourdes, mãe atenta e preocupada com a segurança das filhas, as leva ao assento do banco trazeiro, pensando que deveriam inventar cintos de segurança para crianças em carros, assim como existem para adultos nos aviões. Trava a porta e em seguida acomoda-se no banco da frente, ao lado do esposo que já aquecia o motor. 
A família no conforto do veículo segue o percurso de quase três quilômetros pelas ruas de paralelepípedos do bairro, no mais absoluto silêncio, porém, garantindo aos olhares de observadores, sorrisos que endossavam que a vida era boa para quem fosse de bem. 
E assim foram por cerca de dez minutos até chegarem à Igreja Nossa Senhora do Sion na Avenida Dr Gentil de Moura, onde Padre Conde, amigos e familiares  regularmente se encontram nas  missas do domingo. 
Dr Décio dirigia com sorriso nos lábios, mas com agonia e perplexidade no coração. Lembrou do que lera no Diário da Noite naquela manhã a respeito do crime do Edifício Condessa de Pirajá. 
ASSASSINATO NO CENTRO DA CIDADE

"REPERCUSSÃO DO CRIME”
A polícia já tem o nome da pessoa encontrada morta com sete facadas na última sexta-feira, no Edifício Condessa de Pirajá, no centro da cidade. Trata-se de Antonio Carlos do Nascimento, vulgo, Tripé, homem pardo, solteiro, de 42 anos, motorista particular e natural de São Carlos do Pinhal, interior do Estado. 
Sabe-se que ele estava desempregado há dois meses pelos documentos encontrados em seu apartamento, o mesmo que havia alugado da prima que fora Miss São Carlos do Pinhal do ano de 1950. 
Suspeita-se de crime passional, pois uma mulher de boa aparência, vestindo um elegante casaco de gabardine bege, usando óculos escuros, foi vista saindo pela porta dos fundos do edifício de forma bastante estranha. 
O porteiro José Venâncio Soares, foi quem encontrou o corpo de Antonio no apartamento 812, passando em seguida as informações à polícia.  
Dr Décio, não tinha dúvidas, a esposa estava envolvida até o pescoço na morte do motorista que ele havia demitido dois meses antes. 
Fez isso quando soube, através de uma carta anônima, claramente escrita por uma mulher irada, que Antonio, o maldito sedutor, era um aproveitador e desviador de caráter de senhoras bem casadas, distintas e comprometidas com a moral e os bons costumes. Que ele, Antonio, havia fugido de sua cidade natal por conta de juras de morte feitas por maridos traídos de lá. Deixando a mulher e cinco filhos desamparados. Que ele deveria ficar muito atento pois Maria de Lourdes andava frequentando o apartamento dele no Edifício Condessa de Pirajá. 
Dr Décio até então desconfiava de alguma, mas não sabia exatamente do que. Descobriu na espreita, embora não tivesse se manifestado com ela e muito menos com ninguém, que sua linda esposa o traia nas suas barbas, mas provavelmente porque fora ludibriada pelo motorista salafrário, enquanto fazia o seu trabalho. Ele conhecia bem ela e sabia de sua fidelidade. 
__ O que diriam os vizinhos, os amigos, os parentes se soubessem de tudo aquilo? 
Foi um período de indecisões e lamentações aquele. Dr Décio, inconformado, surpreso, magoado, guardou para si toda a ira de homem traído, e agora um corno. Um irremediável corno. 
A vergonha cobria sua alma, roía as vísceras, esmagava o fígado, mas ninguém poderia saber de nada. A vida tinha que seguir como sempre foi: sem vestígios.  
Absteve-se de qualquer ação violenta em prol da família e de sua imagem. Afinal, como os mais próximos diziam: ele era um doce de pessoa. 
A imagem própria e o sucesso familiar era tudo para Décio Rodrigues e Alves, por isso decidiu que bastaria demitir o motorista para ficar tudo resolvido e esquecido, pois, além de não conhecer a cidade como deveria,  Antonio não cuidava do polimento do automóvel, portanto: rua e ponto final. 
Maria de Lourdes, dividida entre a família e a paixão secreta que a levava à loucuras, sabia que se envolvera com empregado num lapso de razão, e já não mais sabia o que pensar. 
Às vezes acreditava que o esposo descobrira seu romance fortuito, mas ao mesmo tempo achava impossível imaginar que ele pudesse saber e se calar concordando com tamanha vulgaridade. 
__ Ainda mais ele! 
Outras vezes ela acreditava que o marido nada sabia de verdade, tentava se convencer disso. Que era coisa da cabeça dela, que só podia ser. 
__ Nunca, jamais! 
O ruído no assoalho naquela tarde chuvosa e em seguida o vaso de porcelana chinês caído ao chão do nada, enquanto ela e o amante estavam em paixões no quarto do casal Rodrigues e Alves, não havia sido provocado, sem querer, pelo marido perplexo, espreitando o inimaginável. E nem o ronco do motor que ouviram num outro dia, seria de um taxi que trazia eventualmente o marido desconfiado até sua casa em horário rigorosamente de trabalho com intuito de um flagrante destruidor.
Coisas da cabeça! Pensou ela.
A missa do Padre Conde transcorreu normalmente. O tema abordado naquela manhã fria de domingo pelo pastor dirigido ao rebanho foi, curiosamente, sobre a fidelidade. Fidelidade, que segundo ele, era a base da confiança nas relações entre os filhos do Pai: entre a família, entre o esposo e a esposa, entre os filhos, os irmãos, amigos, parentes e, principalmente, a quem devemos temer acima de tudo: Ele, o Pai. 
Nenhum um pio entre os fervorosos. Todos muito compenetrados nos pensamentos, ouvindo o sermão com atenção. 
Tenho comigo que se pudesse alguém entrar em cada uma daquelas cabeças e ler os pensamentos de cada um deles, talvez se surpreendesse com o que encontraria. 
A única voz que ecoava na enorme igreja era a do padre Conde, e o castelhano do frade confundia as crianças e os idosos. 
Onze e dez. Fim da missa seguido dos cumprimentos, despedidas e desejos de boa semana, trocados por todos com aparente afeto. 
A noite deste mesmo domingo chegou. O dia se passou com poucas palavras trocadas entre Dr Décio e Maria de Lourdes. As meninas adoraram o passeio e o almoço em São Bernardo do Campo fez sucesso. 
__ O frango com polenta estava uma delícia, né mamãe? Disse, Márcia. 
__ Mas o doce no Gato-Que-Ri estava mais gostoso ainda, né papai? Martha observou. 
Noite, dez e vinte e três. A família se recolheu nessa hora. 
No casarão não se via nenhum ambiente iluminado, exceto o jardim de inverno. 
Dr Décio sentou-se no sofá de sua preferência, enquanto que Maria de Lourdes virava-se de um lado para outro nos cobertores quentinhos e lençóis macios da cama de pena de ganso.  
Ele, apreensivo também baforava no charuto cubano reservado para as horas de reflexão. Folheava as páginas de sua agenda e para segunda-feira, dia seguinte, dia vinte, logo pela manhã, anotou o compromisso principal do dia: procurar e ter uma boa conversa com o Dr Cardoso. 
Dr Duílio Cardoso de Moraes era o delegado-chefe da Central de Investigações da Polícia Civil do Estado de São Paulo e ele, por coincidência, era primo legítimo, de primeiro grau, quase irmão, de Dr Décio. Eles cresceram e foram criados juntos, sempre muito próximos.  Amigos mesmo.
De certo, nele, Dr Décio poderia confiar e mais ainda, poderia contar. Isso ele não tinha dúvidas.  

IV 
(Parte final)  
Terça-feira, 20 de agosto de 1.953 - Um ano depois.  
Apesar do inverno o dia amanheceu quente. Desde cedo os raios de sol se infiltraram pelos janelões iluminando e aquecendo o casarão da Rua da Independência, número 17 no bairro do Ipiranga. 
Dr Décio, depois do café e da leitura matinal dos jornais, se preparava para mais um dia de trabalho. As filhas bem arrumadinhas e cuidadas pela mãe já tinham ido para o Ateneu, embarcaram no ônibus escolar, sempre pontual, às seis e quarenta e cinco da manhã. 
E Maria de Lourdes, naquele dia estava radiante, pois lá pelas dez iria até a cidade comprar uns metros de tecidos para fazer um novo vestido. Cantarolava pela casa toda alegre.  
O casamento de Cristina Albuquerque de Mendonça, amiga que conhecera seis meses antes num baile de carnaval no Clube Ipiranga, estava chegando e portanto, precisava preparar um novo vestido para o evento.
__ Casamento chique, Décio! Esse não podemos perder por nada! 
Dr Décio seguiu para a Livraria Rodrigues e Alves na rua XV de Novembro, no centro da cidade como sempre fez, desde os tempos de criança quando acompanhava o pai. Estava feliz também, tudo parecia normal, como deveria e sempre tivera sido. 
O Ford 1948 todo preto estava bem lustrado, era conduzido por Jonas Luiz, o novo motorista da família. Este sim, nascido e criado em São Paulo, portanto, conhecedor da cidade como ninguém e muito cuidadoso com o polimento do veículo. 
__ Dr Décio não gosta de ver sequer uma manchinha no automóvel da família! 
O patrão o orientou para que depois retornasse ao casarão para levar Dona Maria de Lourdes às lojas de sua preferência e para que desse toda atenção a ela no que precisasse. E no final da tarde, cinco e quarenta e cinco, em ponto, estivesse em frente a livraria para que pudesse traze-lo de volta para casa. Eram essas as tarefas de Jonas Luiz, o novo motorista para aquele dia de agosto de 1953. 
No caso do crime do Edifício Condessa de Pirajá, ocorrido um ano antes, a polícia chegou na conclusão que não procedia a história do porteiro, José Venâncio Soares. Não convenceu o delegado-chefe, Dr Cardoso que havia tomado o comando do caso.   ...que ele vira alguém estranho saindo pelos fundos do prédio e foi logo subindo no apartamento da vítima. Não cheirava bem, não convencia ninguém. Segundo os altos, não existiu essa tal mulher elegante de capa de gabardine bege e óculos escuros. Era tudo balela.
Somente o porteiro tinha a chave do apartamento, além da própria vítima, é claro… Portanto…
 
Como suspeitou-se de envolvimento emocional entre dois homens, constatado pela desarrumação da cama - conclusão do inquérito, a polícia entendeu por bem em não divulgar a verdadeira causa para a imprensa, preferiu a hipótese de cobrança de marido traído. José Venâncio concordou em assinar a confissão nesses termos. 
__ Melhor do que se passá por bicha, né Dotô? (sic) Corno, ainda vai… mas viado, não, né? (sic)
Somente Décio Rodrigues e Alves e Maria de Lourdes Rodrigues e Alves sabiam do verdadeiro motivo do crime do Edifício Condessa de Pirajá. 
Dr Décio acreditava piamente que a esposa, arrependida, queria encerrar o caso extra-conjugal, enquanto que o amante não permitia, ameaçando ela de revelar tudo ao marido. 
E ela, Maria de Lourdes, sabia que o verdadeiro motivo do crime foi o desgosto da traição do amante, quando descobriu que ele mantinha um caso com uma Miss de São Carlos do Pinhal, dez anos mais jovem que ela.
Nem Décio e nem Maria de Lourdes ousaram tocar no assunto do crime do Edifício Condessa de Pirajá. Nunca, em nenhum momento, jamais. 
Dr Cardoso, soube da história pelo primo Décio que havia solicitado ajuda, mas ele não conta. Além do que, seis meses depois do caso resolvido, Dr Cardoso veio a falecer, foi assassinado numa emboscada da bandidagem na baixada do Glicério, próximo ao Parque Xangai.
E assim foi. 




08/02/2015

O CRIME DO EDIFÍCIO CONDESSA DE PIRAJÁ

I 
Sexta Feira, 17 de agosto de 1952 
Girou a chave na fechadura por duas vezes para se certificar que a porta do apartamento 812 estava de fato trancada. Passou o lenço na maçaneta de bronze como se estivesse polindo a peça. De cabeça baixa olhou para os lados para ter certeza que ninguém a observava. A luz tênue do corredor estreito do oitavo andar do Edifício Condessa de Pirajá na Rua Benjamim Constant, 443 - próximo à Praça da Sé, contribuía para a discrição que Maria de Lourdes tanto precisava naquele momento que insistia ser de muita aflição.  
Apesar das duas da tarde, o dia nublado de inverno impedia que a luz do sol atravessasse os janelões que ficavam nas extremidades do corredor, não iluminando na plenitude o piso de ladrilhos com desenhos harmoniosos mesclando os marrons aos beges e as paredes com pinturas de folhagens campestres que se entrelaçavam entre tons dourados, verdes e vermelhos.  
Ela levantou a gola larga do casaco de gabardine encobrindo o pescoço fino que sustentava um colar de pérolas já um pouco desgastados e colocou os óculos escuros encontrados no bolso deste. Guardou as chaves na bolsa preta de couro que carregava no braço direito e em seguida deu cinco passos apressados no sentido esquerdo, parando diante da porta do elevador de serviços. Suspirou, encheu-se de ar buscando recuperar a serenidade que uma mulher séria e bem casada precisaria ter. Olhou-se de baixo para cima, de fio a pavio, conferindo se estava tudo em ordem. Alinhou os cabelos e chamou a máquina com um toque nervoso de uma das mãos.  
Fez o contato com o painel disposto no lado direito da porta, onde se lia: Atlas,  utilizando as costas do dedo médio da mão direita, este dobrado. Hábito adquirido na infância de tanto ouvir da mãe que nunca poderíamos tocar com nossos indicadores nas coisas que víamos na rua. Que deveríamos protege-los das bactérias nojentas deixadas pelos dedos das outras pessoas. Segundo ela, nosso indicador servia apenas para coçarmos o canto da vista, tirarmos casquinhas constrangedoras do nariz, desde que discretamente, sem que ninguém perceba e, talvez, uma ou outra coisa mais. Portanto, a regra seria preservar os indicadores para necessidades mais nobres.  
Maria de Lourdes, na semana anterior, completou 34 anos, embora acreditassem alguns que ela não aparentava mais que 26 ou 27.  
De corpo esguio com um metro e sessenta e cinco de altura, mantinha os cabelos compridos de um castanho claro, ondulados, sempre bem penteados. Confundia-se naturalmente com uma mulher da alta sociedade recém chegada da Europa ou dos Estados Unidos. 
O rosto fino e angulado davam-lhe a sensualidade que chamava a atenção dos homens. Os olhos ligeiramente azulados acentuavam-lhe o semblante meigo e ao mesmo tempo provocativo.  
Casada e feliz há quase treze anos, como diziam todos os amigos e parentes, teve gêmeas idênticas logo no primeiro ano do matrimônio. Martha e Márcia as meninas que coincidentemente comemoravam o aniversário na mesma data que o pai, só para enche-lo de orgulho.  
Décio Rodrigues e Alves, o Dr Décio, homem de 46 anos, cultivava bigodes finos e bem aparados para garantir-se da imagem de homem de profundos princípios éticos e morais. Vestia-se sobriamente e não largava o paletó e a gravata nem mesmo aos finais de semana. Seus quase dois metros de altura, os braços enormes e as mãos grandes, davam-lhe o quê do todo-poderoso. Quando conversava provocava no interlocutor um temor inexplicável, acho que era o jeito dele falar… diziam, embora quem o conhecesse bem sabia que ele era um doce de pessoa (?). Eram inevitáveis também os apelidos jocosos, mas ninguém ousava dizer-lhe à frente. Nem eu me arriscaria neste relato. 
Trabalhava desde muito jovem e iniciou na profissão com o pai, seu Artur Rodrigues e Alves, com quem aprendera o ofício e a tocar o negócio de família na Livraria Rodrigues e Alves, estabelecida na Rua XV de Novembro, 117 no centro de São Paulo. Dr Décio fez carreira como livreiro e conhecia quem de verdade tinha cultura nesta cidade. 
A campainha e a piscada luminosa do painel anunciaram a chegada do elevador. A porta se abriu com um ruído desproporcional. De certo os dos apartamentos vizinhos ouviria o som lembrando da chegada de uma velha locomotiva numa estação do interior: barulho de ferro, madeira se retorcendo e apito.  
Maria de Lourdes foi logo entrando na cabine e  se colocando de frente para a porta já que não havia mais ninguém e isso foi fácil. Conferiu novamente os botões da bolsa de couro preta que acabara de fechar,  verificou se as mãos estavam bem limpas, ajeitou a gola do casaco, ouvindo o ruído escandaloso das portas se fechando, equilibrando-se do solavanco que deu partida ao térreo. 
Pronto, espero que não tenha esquecido nada! 
Pensou Maria de Lourdes quase que em voz alta, ajeitando os cabelos.
Saiu pela porta dos fundos do edifício sem ser notada. (ou quase) e misturou-se na multidão.


II
 
Sábado, 18 de agosto de 1952 
Depois do café da manhã em família, Dr Décio caminhou até o jardim de inverno que ficava na frente do soberbo casarão da Avenida Independência, número 17, no bairro do Ipiranga e sentou-se na poltrona de sua preferência. De lá ele avistava o jardim de bromélias, hortênsias e crisântemos. E as folhagens das árvores nativas da mata atlântica de tamanhos diversos mantidas bem conservadas, e o conjunto se mostrando bucolicamente encantador. 
O jardim ocupava praticamente toda a parte frontal do casarão. No inverno aquele cenário trazia tranquilidade ao proprietário e da poltrona, fumando o seu cubano é que Dr Décio tomava as decisões mais importantes para a livraria e para a vida da família.  
O sobrado de fachadas largas tinha no segundo piso a área privativa, onde enormes venezianas se compunham numa arquitetura de estilo mexicano. O terreno era cercado por muros altos e tomava grande porção no quarteirão. 
Ninguém ousaria incomodar Dr Décio nesses momentos de reflexões e leitura matinal.
 
Como de costume ele carregou o jornal pelos braços, acendeu o charuto, acomodou-se e buscou as manchetes da primeira página  do Diário da Noite, como se fosse um rei ávido por notícias do seu reinado. 
Entre tantas, uma em especial chamou sua atenção: 
ASSASSINATO NO CENTRO DA CIDADE 
A manchete de primeira página anunciava um crime bárbaro que fora descoberto pelo porteiro do edifício no final da tarde do dia anterior. 
Um homem com cerca de 40 anos de idade, ainda não identificado, foi encontrado na tarde de ontem, morto com sete facadas dentro do apartamento de 812 do oitavo andar do Edifício Condessa de Pirajá na Rua Benjamim Constant,443 no centro de São Paulo.  
As primeiras observações da perícia acreditam, como não foram encontrados vestígios de arrombamentos, que, provavelmente, o assassino ou assassina era conhecido da vítima. Aparentemente nada fora roubado, somente a cama que foi encontrada desarrumada, com lençóis pelo chão e alguns documentos da vítima espalhados sob a mesinha da sala.  
O porteiro foi quem encontrou o corpo. José Venâncio Soares, de 38 anos, percebeu algo estranho quando notou uma mulher de boa aparência, de cabelos claros e bem vestida, desceu do elevador de serviço e saiu às pressas pela porta dos fundos por volta das duas da tarde de ontem, sexta feira - "Achei aquilo muito estranho, mulhé bonita no elevadô de selviço, fui conferi"(sic)
Dr Décio fechou o jornal. Deixou o charuto apoiado no cinzeiro, ergueu-se e por um tempo manteve-se em silêncio, pensativo e certamente, perplexo. Olhava fixamente paras as bromélias, hortênsias e crisântemos do suntuoso jardim do casarão da Rua Independência. 
... Apartamento, 812 do Condessa de Pirajá na Benjamim Constant? Ontem? Não é possível!
Não perca o próximo revelador, surpreendente, capítulo de:
O CRIME DO EDIFÍCIO CONDESSA DE PIRAJÁ.

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