08/02/2015

O CRIME DO EDIFÍCIO CONDESSA DE PIRAJÁ

I 
Sexta Feira, 17 de agosto de 1952 
Girou a chave na fechadura por duas vezes para se certificar que a porta do apartamento 812 estava de fato trancada. Passou o lenço na maçaneta de bronze como se estivesse polindo a peça. De cabeça baixa olhou para os lados para ter certeza que ninguém a observava. A luz tênue do corredor estreito do oitavo andar do Edifício Condessa de Pirajá na Rua Benjamim Constant, 443 - próximo à Praça da Sé, contribuía para a discrição que Maria de Lourdes tanto precisava naquele momento que insistia ser de muita aflição.  
Apesar das duas da tarde, o dia nublado de inverno impedia que a luz do sol atravessasse os janelões que ficavam nas extremidades do corredor, não iluminando na plenitude o piso de ladrilhos com desenhos harmoniosos mesclando os marrons aos beges e as paredes com pinturas de folhagens campestres que se entrelaçavam entre tons dourados, verdes e vermelhos.  
Ela levantou a gola larga do casaco de gabardine encobrindo o pescoço fino que sustentava um colar de pérolas já um pouco desgastados e colocou os óculos escuros encontrados no bolso deste. Guardou as chaves na bolsa preta de couro que carregava no braço direito e em seguida deu cinco passos apressados no sentido esquerdo, parando diante da porta do elevador de serviços. Suspirou, encheu-se de ar buscando recuperar a serenidade que uma mulher séria e bem casada precisaria ter. Olhou-se de baixo para cima, de fio a pavio, conferindo se estava tudo em ordem. Alinhou os cabelos e chamou a máquina com um toque nervoso de uma das mãos.  
Fez o contato com o painel disposto no lado direito da porta, onde se lia: Atlas,  utilizando as costas do dedo médio da mão direita, este dobrado. Hábito adquirido na infância de tanto ouvir da mãe que nunca poderíamos tocar com nossos indicadores nas coisas que víamos na rua. Que deveríamos protege-los das bactérias nojentas deixadas pelos dedos das outras pessoas. Segundo ela, nosso indicador servia apenas para coçarmos o canto da vista, tirarmos casquinhas constrangedoras do nariz, desde que discretamente, sem que ninguém perceba e, talvez, uma ou outra coisa mais. Portanto, a regra seria preservar os indicadores para necessidades mais nobres.  
Maria de Lourdes, na semana anterior, completou 34 anos, embora acreditassem alguns que ela não aparentava mais que 26 ou 27.  
De corpo esguio com um metro e sessenta e cinco de altura, mantinha os cabelos compridos de um castanho claro, ondulados, sempre bem penteados. Confundia-se naturalmente com uma mulher da alta sociedade recém chegada da Europa ou dos Estados Unidos. 
O rosto fino e angulado davam-lhe a sensualidade que chamava a atenção dos homens. Os olhos ligeiramente azulados acentuavam-lhe o semblante meigo e ao mesmo tempo provocativo.  
Casada e feliz há quase treze anos, como diziam todos os amigos e parentes, teve gêmeas idênticas logo no primeiro ano do matrimônio. Martha e Márcia as meninas que coincidentemente comemoravam o aniversário na mesma data que o pai, só para enche-lo de orgulho.  
Décio Rodrigues e Alves, o Dr Décio, homem de 46 anos, cultivava bigodes finos e bem aparados para garantir-se da imagem de homem de profundos princípios éticos e morais. Vestia-se sobriamente e não largava o paletó e a gravata nem mesmo aos finais de semana. Seus quase dois metros de altura, os braços enormes e as mãos grandes, davam-lhe o quê do todo-poderoso. Quando conversava provocava no interlocutor um temor inexplicável, acho que era o jeito dele falar… diziam, embora quem o conhecesse bem sabia que ele era um doce de pessoa (?). Eram inevitáveis também os apelidos jocosos, mas ninguém ousava dizer-lhe à frente. Nem eu me arriscaria neste relato. 
Trabalhava desde muito jovem e iniciou na profissão com o pai, seu Artur Rodrigues e Alves, com quem aprendera o ofício e a tocar o negócio de família na Livraria Rodrigues e Alves, estabelecida na Rua XV de Novembro, 117 no centro de São Paulo. Dr Décio fez carreira como livreiro e conhecia quem de verdade tinha cultura nesta cidade. 
A campainha e a piscada luminosa do painel anunciaram a chegada do elevador. A porta se abriu com um ruído desproporcional. De certo os dos apartamentos vizinhos ouviria o som lembrando da chegada de uma velha locomotiva numa estação do interior: barulho de ferro, madeira se retorcendo e apito.  
Maria de Lourdes foi logo entrando na cabine e  se colocando de frente para a porta já que não havia mais ninguém e isso foi fácil. Conferiu novamente os botões da bolsa de couro preta que acabara de fechar,  verificou se as mãos estavam bem limpas, ajeitou a gola do casaco, ouvindo o ruído escandaloso das portas se fechando, equilibrando-se do solavanco que deu partida ao térreo. 
Pronto, espero que não tenha esquecido nada! 
Pensou Maria de Lourdes quase que em voz alta, ajeitando os cabelos.
Saiu pela porta dos fundos do edifício sem ser notada. (ou quase) e misturou-se na multidão.


II
 
Sábado, 18 de agosto de 1952 
Depois do café da manhã em família, Dr Décio caminhou até o jardim de inverno que ficava na frente do soberbo casarão da Avenida Independência, número 17, no bairro do Ipiranga e sentou-se na poltrona de sua preferência. De lá ele avistava o jardim de bromélias, hortênsias e crisântemos. E as folhagens das árvores nativas da mata atlântica de tamanhos diversos mantidas bem conservadas, e o conjunto se mostrando bucolicamente encantador. 
O jardim ocupava praticamente toda a parte frontal do casarão. No inverno aquele cenário trazia tranquilidade ao proprietário e da poltrona, fumando o seu cubano é que Dr Décio tomava as decisões mais importantes para a livraria e para a vida da família.  
O sobrado de fachadas largas tinha no segundo piso a área privativa, onde enormes venezianas se compunham numa arquitetura de estilo mexicano. O terreno era cercado por muros altos e tomava grande porção no quarteirão. 
Ninguém ousaria incomodar Dr Décio nesses momentos de reflexões e leitura matinal.
 
Como de costume ele carregou o jornal pelos braços, acendeu o charuto, acomodou-se e buscou as manchetes da primeira página  do Diário da Noite, como se fosse um rei ávido por notícias do seu reinado. 
Entre tantas, uma em especial chamou sua atenção: 
ASSASSINATO NO CENTRO DA CIDADE 
A manchete de primeira página anunciava um crime bárbaro que fora descoberto pelo porteiro do edifício no final da tarde do dia anterior. 
Um homem com cerca de 40 anos de idade, ainda não identificado, foi encontrado na tarde de ontem, morto com sete facadas dentro do apartamento de 812 do oitavo andar do Edifício Condessa de Pirajá na Rua Benjamim Constant,443 no centro de São Paulo.  
As primeiras observações da perícia acreditam, como não foram encontrados vestígios de arrombamentos, que, provavelmente, o assassino ou assassina era conhecido da vítima. Aparentemente nada fora roubado, somente a cama que foi encontrada desarrumada, com lençóis pelo chão e alguns documentos da vítima espalhados sob a mesinha da sala.  
O porteiro foi quem encontrou o corpo. José Venâncio Soares, de 38 anos, percebeu algo estranho quando notou uma mulher de boa aparência, de cabelos claros e bem vestida, desceu do elevador de serviço e saiu às pressas pela porta dos fundos por volta das duas da tarde de ontem, sexta feira - "Achei aquilo muito estranho, mulhé bonita no elevadô de selviço, fui conferi"(sic)
Dr Décio fechou o jornal. Deixou o charuto apoiado no cinzeiro, ergueu-se e por um tempo manteve-se em silêncio, pensativo e certamente, perplexo. Olhava fixamente paras as bromélias, hortênsias e crisântemos do suntuoso jardim do casarão da Rua Independência. 
... Apartamento, 812 do Condessa de Pirajá na Benjamim Constant? Ontem? Não é possível!
Não perca o próximo revelador, surpreendente, capítulo de:
O CRIME DO EDIFÍCIO CONDESSA DE PIRAJÁ.

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