28/09/2011

Olivia



Olivia 
Minha querida, Olivia. Você ainda não me conhece, mas eu já conheço você. Não pôde me ver quando tentou abrir os olhos despertada pela minha voz te contemplando lá na maternidade, quando te levei ao colo. Três quilos e meio. Pesadinha, heim!
Dizem que os bebês não enxergam direito. Eu não me lembro direito dessa minha fase, faz tempo e minha memória não anda lá essas coisas, por isso não posso afirmar nada.
Adorei o seu jeitinho de olhar.



Onde você estava era mais escurinho, não é? Aqui fora é mais claro e se prepare, mais barulhento. Mas você vai gostar. Acredite.

Acho que minha voz você ouviu. Sou seu vovô e vai me chamar de vô daqui um ano e meio mais ou menos e você ouvirá muitas estórias, como suas irmãs e primas ouvem e riem das maluquices que eu conto. Elas se divertem e acho que você vai gostar também. Se não quiser ouvi-las é só pedir que eu páro na hora, tá bom?

Sou o pai da sua mãe e digo que estou muito feliz com sua chegada, com seu nascimento. Muito feliz mesmo.
O vovô é meio bobo, mas lá no fundo é legalzinho. Você poderá contar sempre comigo. Gosto de crianças e em especial das minhas netas. Com você, Olivia, são cinco - cinco lindas meninas que considero mais do que a mim mesmo.
Gosto também de animais e, estranho, acho que eles gostam de mim também. Nunca fui mordido por nenhum deles e entendo bem seus olhares. Conversamos de vez em quando. Se você quiser, quando crescer vou te ensinar como se faz isso. Eles gostam de conversar com a gente.

Espero que você seja muito feliz, assim como, espero que todas as crianças do mundo sejam felizes também. Todas, absolutamente todas, pois elas sendo alegres e felizes os seus pais também serão e eles sendo felizes o mundo será melhor.

Minha amada, seja bem vinda a este mundo. Apesar de confuso ele é legal. Irritante às vezes, complexo e destrambelhado. Há muita discriminação e medimos forças constantemente. Nós adultos de maneira geral somos inseguros  e costumamos colocar culpa nos outros das falhas que enxergamos em nós mesmos.
Fazemos guerras, brigamos, provocamos. Mas acho que se você crescer sabendo que as coisas podem ser resolvidas conversando e procurando passar para outras pessoas essa maneira de ser, você encontrará um mundo bem melhor e se dará bem vivendo nele.
Reforço, aqui é legal pra caramba. Muito legal. Estar vivo neste planeta azulado (você vai entender melhor quando crescer porque digo que é azulado) é um privilégio.

Acreditamos numa coisa suprema e isso nos conforta, principalmente nos momentos de aflição. O criador de tudo? Dizem que é, mas não sei se é bem isso. Mas, é certo que é uma entidade muito superior e quanto mais dirigimos nossos pensamentos a ele, mais nos sentimos leves. Incrível, difícil de explicar, mas é verdade. O chamamos de Deus. Em português é assim, com a letra D em maiúsculo, sinal de respeito (aqui entre nós, pura bobagem - ele lê nossos pensamentos, sabe dos nossos sentimentos, tenho certeza de que ele não liga pra isso). Não dá pra mentir pra ele. Esse é o cara, pode confiar.

Olivia, agora vou dormir, pois amanhã tenho que trabalhar. Vou agradecer a Deus (com D maíusculo) a sua chegada. Faltava você em nossas vidas. A vida ficou ainda melhor com você entre nós.

Em tempo: seu nome é lindo - Olivia, acho que combinou. Era você mesmo que esperávamos.

Um beijo do vô. Até amanhã e durma com Deus.





25/09/2011

Tempos modernos


Internet é uma coisa fantástica. Nela conectados encontramos qualquer coisa num piscar de olhos. Claro, desde que estejamos bem conectados. No Brasil a banda larga poderia ser um pouco mais larga e de maior disponibilidade, mas acho que isso acontecerá em breve - questão de tempo. Mesmo assim o meio é simplesmente espetacular. Se incorporou ao cotidiano muito rapidamente e acredito que sem retorno, pelo contrário, cada vez mais a utilizaremos para tudo.

E as redes sociais então. Parecem coisas do outro mundo. Através delas encontramos amigos, antigos, esquecidos ou não, com quem trabalhamos um dia, estudamos ou convivemos oportunamente. Amizades marcantes que delas aprendemos, ensinamos, brincamos e até brigamos. Os que cruzaram nossos caminhos em breves passagens mas mesmo assim, deixando sua presença viva em nossa memória.

Nas redes sociais podemos brincar, xingar, escrever bobagens, falar coisas sérias, dar opiniões, mandar beijos, lembranças, fotografias, registros e divulgar assuntos que ganham atenção provocando boas discussões. Para quem quiser participar. Considerando ou desconsiderando, num clique ou num rolar de barras, foi-se. 
Li outro dia uma matéria onde uma jovem jornalista apresentando-se como dependente profissional do facebook, twitter e de outros sites, tinha recebido a  tarefa de relatar como seria ficar um mês sem se conectar. Um mês trabalhando na redação do jornal sem utilizar qualquer recurso da internet. E ela, instigada, estendeu a experiência à vida pessoal. Nada de cartões de crédito, contatos, emails, pesquisas, entretenimento. Faria tudo sem a maravilhosa ferramenta. 

Os dias no jornal foram longos. As tarefas normalmente feitas a partir de um clique, ficaram em conversas diretas com as pessoas,  por telefones, pesquisas em livros, revistas, jornais antigos, tudo na base do impresso.
Durante o período cedeu uma ou duas vezes à tentação. Na calada da noite ligou seu PC sem que ninguém percebesse, conectou-se e observou que as postagens do face, twitters, emails e tantas outras informações iam se acumulando. Entrou em desespero. 
Conteve-se bravamente mantendo-se firme e forte ao seu propósito. Foi difícil.


Disse a jornalista que quase enlouqueceu. A sensação de isolamento e “abandono” - esse foi o termo que usou, deixaram seus dias bem complicados e por demais intranquilos. Sentiu-se à parte de seu tempo, como vivendo no século passado.
Foi um alívio quando tudo terminou, concluiu a matéria de forma brilhante e achei o artigo bastante interessante.
Por ser ainda muito jovem, profissional em início de carreira,  nascida e criada em meio a velocidade dos bits, não teve, como tiveram os mais antigos a oportunidade da comunicação analógica. Experimentou ali algo novo. 
Mas não é esse o caso. O caso na verdade é que damos conta do peso da necessidade da sintonia com o contemporâneo e esta leva um profissional, um cidadão comum a uma espécie de rendição, subordinação à trama que o induz a pisar fundo no acelerador. 


É o caso também nesses tempos, que, involuntariamente, acabamos nos individualizando, ficamos reféns de nós mesmos. A sintonia requerida pelos tempos modernos nos leva a um isolamento que compartilhamos com todos através dos contatos virtuais, um novo modelo de vida se estabeleceu. Nada grave é assim mesmo. Mas se a onda nos levar à ver navios, pra voltar vai ser difícil. 
Sugiro somente que nos mantenhamos atentos, bem atentos, muito atentos, dando importância devida ao sentido do estar vivo de verdade. É preciso dar importância para a percepção de como olhamos a vida e não somente de como vivemos por ela.
Ando pensando nisso. Vivo conectado pelos portáteis, pelos computadores de mesa, pelos celulares e gps`s. A abundância de chamados crescem a cada dia. Me cobro pela atualização das informações. Há de se ter disciplina.
Numa boa, acho que dá para fazer as duas coisas, sobreviver e viver ao mesmo tempo.
Viva a internet e viva a vida. (digo pra mim mesmo)

24/09/2011

A ideia.

Foto encotrada na Internet

Um amigo publicou uma mensagem no Facebook.
“É incrível. Estados Unidos sofrem com o furacão Irene, agora o golfo do México, ali ao lado, está aguardando o furacão Hilary, o Japão enfrenta Tsunami; a Grécia se afunda, Itália e Espanha estão no buraco, e o Brasil é um Oásis de felicidade. Está certo que nós temos aqui a violência e a corrupção. Então vamos lutar para acabar com a violência e a corrupção cortando o mal pela raiz. VAMOS VOTAR EM GENTE SÉRIA E HONESTA”

Aqui comigo pensei: o Brasil é um oásis de felicidade, votar em gente séria e honesta. Interessante.
Em poucos minutos seguiu-se a sequência de postagens:
“Difícil é encontrar essa opção!”
“Quem tem esse perfil não se candidata, acaba se corrompendo às vezes até sem a pessoa querer”
“falô tudo, só que as vezes penso que esse mundo não tem mais jeito... e a nossa política não sei porq corrompe nossos homens...”
Uma atrás da outra, sem parar, até que o amigo se pronunciou:
“Procurando, acha. A maioria é desonesta, mas nossa obrigação é varrer os sacanas”
Outra avalanche de contestações:
“mas a questão é... estamos falando de um homem que a gente vê íntegro, se candidata, a gente, vota põe a maior fé... chega lá ele se perde e a gente desconhece. Deve ser o lance de levar vantagens quando está lá, esquece do povo... mas eu sei que existe muita gente séria, que pode fazer a diferença, mas parece que a maioria das vezes o mal caráter se destaca, mas é por isso que está em toda parte... supermercado, igrejas, clubes, empresas...”
“pode ser que eu esteja errada, ou já perdi as esperanças de ver um mundo melhor sem violência, sem me preocupar em mandar meu filho pra escola ou de sair de casa... para trabalhar com medo de não voltar mais. é difícil...”
Veemente, o amigo defendeu sua tese. Percebendo que a manifestação espontânea de tantos não parava, como dominós caindo, um sobre outro, numa sequência lógica e de certa forma, aparentemente constrangido, insistiu um pouco mais:
“Olha gente. A nossa questão é cultural. O brasileiro quer levar vantagem. E aí você vê corrupção na política, corrupção na administração das empresas, corrupção nas igrejas que exploram a crendice popular. O cara entra no supermercado e furta, o cara ver uma bolsa numa mesa num clube(estou falando de E.C. Pinheiros) e leva. Precisamos parar com essa mania de culpar só os políticos, que são safados obedecendo a uma regra geral.”
Um sujeito o qual nunca tinha ouvido falar colocou sua posição:
“Me desculpe, caro amigo. Sou de boa fé também. Acredito nas pessoas e acredito que somos todos, por natureza, do bem.
O que eu não acredito é nessa forma de democracia. Não acredito como as pessoas são eleitas para os cargos. Não acredito em partidos políticos, muito menos em campanhas políticas, coordenadas por publicitários e marqueteiros profissionais. Você já leu algum projeto de candidato quando ele está em campanha? Coisa mais linda. Um revolucionário.
Não acredito na justiça brasileira, assim como não acredito que possamos mudar tão facilmente este mecanismo. Não acredito até mesmo naqueles que chegam lá com as melhores intenções, que consigam alterar as regras. Em pouco tempo tornam-se laranjas dentro de um suco azedo.
Não acredito num sistema que, entre tantas coisas, admita que um deputado ou senador da república, se afaste temporariamente do cargo o qual pleiteou e conquistou para cumprí-lo pelo voto popular, para assumir um ministério a partir de articulações políticas, nefastas. E quando este é delatado por adversários por desvios de verbas públicas, benefícios à parentes, amigos ou coisas dessa natureza e sempre contando com o ampla divulgação da imprensa que se apresenta nessas horas como a balisadora da ética e na sequência ele é destituído em nome de uma transparência e ainda no dia seguinte este tosco cidadão retorne com a maior cara de pau ao posto que lhe fora garantido legitimamente, como se nada tivesse acontecido. De alma lavada, cara esfregada, livre como um pássaro, votando de forma secreta ou não, dependendo do interesse do curral, leis que posteriormente são sancionadas por um presidente, também eleito pelo sistema e que um dia ocupou o mesmo assento na Câmara. Indica, meu caro, que estamos diante de alguma coisa no mínimo patética. E pior, tudo dentro da Lei. 
Acredito sim e muito, meu prezado amigo de boa índole e boa fé, que como não podemos mudar o sistema, devemos então, nas próximas eleições, votar nas putas, pois os filhos delas já fizeram muitos estragos em nosso País e quem sabe assim teremos alguma chance de mudanças”
A troca de mensagens se deu no início da semana. Hoje sábado, abrindo o Facebook lembrei do assunto e curioso fui buscar a continuidade. Nada mais foi escrito. Nenhuma outra manifestação.

Devem estar pensando na possibilidade. Eu estou.

Bom dia!




16/09/2011

Manhãs das Sextas Feiras

As manhãs das sextas feiras são sempre legais.

Mesmo aquelas em que acordamos ouvindo através da janela as fortes chuvas ou as garoinhas que umedecerão as solas dos sapatos pelo dia todo.

Mesmo quando das broncas matinais do cônjuge (a minha é bastante calma, nunca faz isso, desde que eu não pergunte nada a ela na primeira hora, logo depois do bom dia).

Se pisamos no coco do cachorro no quintal ou se nos damos conta que ele estragou alguma coisa, uma roupa sua que você gosta muito, esquecida no varal.
Se tropeçamos logo ao sair da cama levando o dedo do pé ao encontro súbito à quina do móvel mal percebido e que não deveria estar ali, provocando uma dor que mereceria o maior palavrão do mundo.

Se durante a madrugada enquanto estávamos em sono profundo, faltou energia e o relógio não marca a hora certa e você tem um compromisso o qual não pode se atrasar de jeito nenhum e fica de pronto sem saber se está atrasado ou não - será que ainda  existem relógios analógicos que não dependam de energia?

Nada nos aborrece nessas manhãs.
Nem mesmo a lembrança, a primeira do dia, quando a memória te leva ao dia anterior e você se lembra que seu chefe, mais uma vez não reconheceu o seu empenho e parabenizou o outro "colega" por uma ideia roubada de você - é raro isso acontecer com a gente, muito raro.
Quando um amigo ou amiga não te procura mais achando que você não correspondeu à sua lealdade. Que bateram no seu carro, um amassadinho de nada, um risco na pintura, mas que te deixou P da vida.

Ah!  Manhãs de sextas! São calmas, alegres, agradáveis. Tudo na mais perfeita harmonia.
Que trânsito intenso, nada! Aproveito para ver o que nunca reparei no caminho. Que cidade linda essa a minha! Até que são engraçadas e musicais as buzinas dos carros mais apressados de motoristas que, provavelmente estarão com o final de semana comprometidos.


Quem não adora as manhãs de sextas feiras?

Bom dia!  Bom dia.




14/09/2011

Élvio, o ET de Juracy - II


32 anos, antes.
Quando os primeiros raios de sol despontaram pelo horizonte da pequena e quase pacata, Juracy, ouviram-se gritos ensurdecedores, alucinados, vindos da casa contígua à Igreja da Matriz.

II
__ Padre Romério morreu! Mataram o padre! Ajudem, pelo amor de Deus!  Minha Santa Misericórdia, o que fizeram com ele?
Gritava freneticamente, Dona Esperança, a beata de 67 anos, de corpo franzino, viuva há 34 e sem filhos, que todas as manhãs dirigia-se aos fundos da igreja para o preparo do desjejum do padre Romério que gostava de frutas frescas bem lavadas, pão de milho com manteiga de leite de cabra, um ou dois pedaços de bolo de fubá, finalizando a ceia com um café bem forte e sem açucar, mas, que apesar da boa alimentação matinal e outras tantas pelo dia, sofria pelo mal funcionamento dos intestinos que lhe prendiam as entranhas, dificultando a saída regular dos dejetos orgânicos produzidos pela farta alimentação, por dias seguidos e, que em consequência, a inevitável flatulência, ruidosa e mal cheirosa era sentida e ouvida até mesmo durante a missa dominical e por isso ganhou, às escondidas, o carinhoso apelido de Padre Vento que rapidamente corrigidos quando o fadado padre voltava-se ao interlocutor - Padre Bento, padre, o senhor não ouviu direito.
Dona Esperança em prantos gritava sem parar quando encontrou o corpo do querido padre em meio ao sangue abundante que escorria pela cama de lençóis antes de brancura sem igual, fresco em algumas partes e ressecados em outras. Se espalhava pelo quarto de seis metros quadrados e paredes num bege enegrecido pelo tempo, com uma única janela que ficava do lado esquerdo da porta frontal, entre aberta e se contrapondo à parede que sustentava o crucifixo ligeiramente inclinado, imediatamente acima da cama estreita em cuja lateral direita permanecia um funcional  criado-mudo e nele apoiado uma Bíblia de capa vermelha e com as páginas abertas respingadas de sangue. Quarto que serviu de recolhimento e repouso por muitos anos ao mentor da pequena e quase pacata, Juracy. 
Obra de Salvador Dali
A cabeça separada a meio metro do corpo, caída ao chão, com os olhos que foram um dia esverdeados e inquisidores, vertiam lágrimas e ambos arregalados, apavorados, dirigiam-se com horror a quem os vissem, não importando o ponto de vista do espectador incrédulo. As sobrancelhas grisalhas, compridas e bastante grossas enalteciam o semblante tétrico do morto.
Eles estampavam desespero e davam à mórbida cena, a perfeita percepção de sofrimento a quem fora decapitado por golpes de um facão enferrujado esquecido em pé ao canto, apoiado à parede.


Padre Romério tinha sido assinado de forma brutal, no silêncio da noite, aparentemente sem uma causa, uma razão óbvia. 
Nada subtraído de seus pertences que se encontravam bem arrumados no guarda-roupa que ficava ao lado esquerdo da cama e nem se imaginava quem poderia guardar tamanho rancor ou qualquer tipo de mágoa a ponto de cometer a violência na proporção apresentada. De certo, obra de um raivoso lunático, não católico. Até hoje o autor não foi identificado.. 
Em minutos as pessoas se amontoaram diante e dentro da pequena casa. Incrédulas, curiosas, bestificadas. 
Algumas desmaiavam, outras em total desespero jogavam-se ao chão proferindo palavras incompreensíveis. Pessoas correndo de um lado para outro desorientadas. Uma gritaria generalizada.

O prefeito, Seu Eurípedes da Mata, homem sério e respeitado, calvo e de bigode fino, ex professor da Escola Municipal Henrique de Miranda, que a pouco deixara o mestrado para enveredar-se à vida pública, atendendo aos insistentes apelos de praticamente toda a comunidade (insistentes?). De pijama listrado branco e azul - mudo, sem saber o que pensar, olhava aquilo tudo e limitava-se a pedir de tempo em tempo calma aos mais desesperados. 
Acompanhado da primeira dama, Dona Dorinha, sua esposa, que vestida às pressas uma espécie de sobre-tudo de seda sintética, clara e quase transparente, deixava a gordura em excesso balançar desordenadamente pelo corpo como num efeito de câmera lenta, saltitando com dificuldade e erguendo as mãos aos céus clamando por respostas ao Todo Poderoso. Os chinelos de pelos de carneiro lhe protegiam os pés da friagem que infringiam fortes dores, dado o reumatismo adquirido há muitos anos e com os cabelos desalinhados pela noite bem dormida e despertada pelos gritos vindos do além.
Seu Luis, o dono da loja de móveis popular - Luis Móveis,  jamais perderá qualquer oportunidade de se distrair com a mazela alheia - um fofoqueiro de plantão. A esposa, dona Araci, a replicadora das versões do marido, os filhos, sete ao total e sogra, dona Zuzú, acomodada em sua cadeira de rodas.
Dona Marieta, a enfermeira que acabará de sair do plantão na Santa Casa, embrenhava-se por entre as pessoas para o acesso ao local do crime, guiada pelo Delegado, doutor Mario de Assis e dois policiais.
__ Não mexam em nada, não alterem a cena do crime! doutor Mario repetia.


As irmãs, Jurema, Cotinha, Maria do Rosário e Rosalina, as quatro beatas, bisnetas  do Coronel Porfírio, que foi casado com a filha mais velha do fundador da cidade - petrificadas,  emudecidas, vestiam camisolões brancos, em pé, na calçada diante àquela balbúrdia e falatórios, como quatro estúpidas estatuetas, daquelas que encontramos em feiras de artesanatos.
Gente se aproximando de todos os cantos - homens, mulheres, velhos e crianças, conjecturando explicações de toda natureza.
Até mesmo o doutor Solano Pinto estava lá. Raramente visto em público, o homem mais rico que conheceram os da pequena e quase pacata Juracy. Fazendeiro, plantador de algodão, feijão e milho, importador e exportador de bugigangas e praticamente dono de tudo na cidade, inclusive da rádio AM - Nova Juracy  e pra quem todos rendiam o bom dia, boa tarde e boa noite com servidão. Observava em postura altiva, não escondendo a raiva por algo ter acontecido sob suas barbas sem o prévia autorização. (Teria mesmo?)
Com ele dona Maria Emília, a esposa prendada, bonita e recatada, vinda de terras estrangeiras ainda jovem para casar-se e procriar. Respeitada pela vida regrada e dedicada exclusivamente à família e à Deus, a quem temia fervorosamente. Acompanhados estavam pelas jovens filhas - Edilalva de 17 anos e Doralisa, a mais nova de 15 anos, um tanto quanto rebelde e secretamente admirada pela evidente precocidade pelos moços e marmanjos da região - uma menina que em tão tenra idade despontava na formação de uma atraente mulher.
O pai previa seus destinos à vida num convento. Carinhosamente chamava-a de pequena madre Doralisa. Lisa, pela mãe, nos momentos descontraídos em família. Dona Lisa, respeitosamente, pelos menos próximos.
O dia se prolongou aos prantos. Os dias se prolongaram tristes e alterados. 
No cemitério, um monumento foi construído em pouquíssimos dias,  o maior e mais bonito que alguém pudesse supor, evidente que por ordens do doutor Solano Pinto, mantenedor da igreja, com lei criada e aprovada pela Câmara Municipal, sancionado de pronto, mesmo sem leitura pelo Poder Executivo, com a outorga do senhor Prefeito, Eurípedes da Mata. 
A catedral construída em mármore branco que de longe se avistava pelos quase 30 metros de altura, muito além dos muros do cemitério que ficava um pouco distante do centro urbano.  Adornada por lindos vasos cravejados de pedras brilhantes, guardando flores típicas da região que eram trocadas duas vezes ao dia - também por decreto municipal. As estatuetas de figuras angelicais de rostos parecidos aos das pessoas expressivas da história de Juracy - história passada e recente, em bronze polido, dispunham-se simetricamente nas bordas do monumento e no topo deste a esfinge de 12 metros, imponente do Padre Romério, agora Santo por decreto municipal. Olhar distante e sereno, mão direita erguida de forma segura e decidida e com o dedo indicador que apontava o caminho ao norte.


Na lápide de dois por um metro, toda em ouro, lia-se 

“Sua Generosidade, Padre Romério, a eterna Luz de Juracy”

Por muito tempo na cidade não se falou de outra coisa.
Ao completar cinco meses sem missas, sem desjejuns, sem ventos mal cheirosos e muita fornicação, numa tarde ensolarada as pessoas pararam quando perceberam a aproximação de um homem estranho que aparentava uns trinta e poucos anos. 
Trajava uma batina mal passada e pedalava uma bicicleta de aro 28 preta.
Seguiu firme em direção ao palacete do lado leste da cidade que servia de residência dos Pinto. No local se encontrava o prefeito, Eurípides e algumas autoridades e vereadores aliados.
__ Buona Sera!   B o a   T a r d e !   Ouviu-se a voz pelo portão de ferro.
Com um sorriso cativante, olhar penetrante e sotaque de um imigrante possivelmente do sul da Itália, o homem de corpo esbelto, metro e noventa e cinco, de voz postada e olhar penetrante,  prosseguiu sua apresentação aos ilustres que o bem receberam.


__ Mio nome é Gianne Di Pecchia, il patre substituto di Santi, Romieri - R o m é r i o, come a cá sono - c o n h e c i d o!  Caprichou no português meio que soletrando e no italiano nunca ouvido na região.
No domingo que se seguiu, Padre Gian, rezou a primeira missa na Igreja da Matriz. Às 10 horas da manhã de um domingo bastante quente e de céu azul profundo.
A igreja que andara vazia por meses, estava agora lotada de crentes, até mesmo pelos lados externos. Todos queriam conhecer o novo padre, o novo mentor.

Seja Bem Vindo, padre Gian!
Nos primeiros bancos do salão, isolados por uma faixa plástica amarela e preta, se posicionaram as autoridades para assistir a primeira missa. 
Vereadores com suas famílias; representantes da Liga da Moral e Bons Costumes; o prefeito, senhor, Eurípides da Mata com a esposa, dona Dorinha, esbaforida e calorenta; artistas do rádio, imprensa e convidados. 
Em destaque e cercados por dois enormes seguranças, estavam o Doutor Solano, exibindo o dominical terno branco, bem passado que lhe impunha notoriedade, sua linda e formosa esposa, dona Maria Emília e, claro, as filhas, Edilalva e Doralisa, Lisa. Esta, que nunca tinha demonstrado tendências à religiosidade, encantada ficou com a estranha, simpática, carismática e forte figura que conduzia o rito eclesiástico no altar, Padre Gian. Pareceu-lhe naquele momento, um santo.
A vida retomou na pequena e pacata, Juracy. 
… continua





09/09/2011

Élvio, o ET de Juracy.


Élvio, um homem de mídia - um publicitário. Assim ele queria ser visto na sua cidade, a pequena e quase pacata, Juracy, distante em algum ponto no interior do Brasil.


I
Exceto aos domingos, cujas manhãs, desde a infância foram reservadas às obrigações religiosas - missa na Igreja no Largo da Matriz, rezadas pelo Padre, Gian Di Pecchia, um italiano alto e forte, radicado na cidade há cerca de 30 anos e confessor da família, Élvio saía para o trabalho às dez em ponto. Com chuva ou com sol cumpria o ritual de forma rigorosamente disciplinada. 
Tinha fama de honesto, de generoso e de trabalhador. Muito embora, comentava-se ao pé do ouvido sobre seu comportamento, um tanto quanto estranho. Pelo jeito calado de ser, mais para observador e com piadas soltas basicamente do nada e sem muito sentido, desde cedo renderam-lhe o apelido de ET. Foi um menino daqueles que até hoje são ridicularizados nas escolas e fora delas.
Raras as vezes em que não estava trabalhando. Se alguém tivesse contado os dias em que não foi visto circulando pelas ruas de Juracy, nos seus vinte e nove anos de idade e quase onze de profissão, a soma não passaria de cinco. Contaram. 
Foram os dias em que esteve com a que foi considerada, a febre mais intensa que um ser humano poderia suportar, impensável à medicina moderna - 45 graus, da qual nunca souberam da origem e nem como, do nada, ela partira. E, nem tão pouco, compreendera-se como teria sobrevivido aquele jovem de estatura alta e ligeiramente magro, de pele morena marcada pelo sol, com os cabelos lisos, sempre alinhados e ligeiramente caídos à lateral esquerda da grande cabeça, dando ao rosto o formato obtuso de um triângulo e cujo nariz projetara-se com pelo menos um centímetro e meio maior que os narizes comuns - pontudo e angulado, induzindo à combinação para o cultivo de um vasto bigode de fios mal aparados que cobria-lhe boa parte da boca de lábios finos. Por muito tempo só se falou do assunto na quase pacata, Juracy.
Nas primeiras horas da manhã, que nunca iniciavam após a batida das cinco e meia, Élvio, tratava dos bichos - oito galinhas batizadas com nomes de algarismos - 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 e que davam de cinco a seis ovos por dia, mais o galo, chamado ironicamente de Pinto Grande, por ser pequeno; dois casais de patos, Zé Preto, Alemão, Branquela e Choca; um bode, Eliakin, muito nervoso e de poucas palavras, segundo ele e uma cabra mansa, Dengosa, que dela, mais ou menos, um litro de leite quente por dia ele tirava, sempre com orgulho, percebidos por quem o visse de longe, pelos passos desordenados, saltitantes e de braços abertos para o mundo com o jarro de leite numa das mãos e com um sorriso patético (?) estampado ao rosto. Élvio conhecia bem o trato com os animais, por isso mesmo, até Eliakin, o de poucas palavras, o respeitava.
Sem contar os dois canários de estimação, Zico e Feia, que mal cantavam e viviam empoleirados, quietos, mais parecendo duas peças embalsamadas na velha gaiola que ficava dependurada na parede de reboque estufado. De arames enferrujados e com as ripas que se esfarelavam quando mal tocadas, exigindo frequentes remendos com linhas e barbantes de cores diversas encontrados ao acaso e costurados com a destreza de mãos pacientes e decididas como as de Élvio. 
E, também, as brincadeiras com afagos mútuos com seu companheiro leal, Valente, um cão de barriga gorda de lombrigas, cujo bucho, irremediavelmente desforme, se arrastava pelo chão quando caminhava meio que sem direção à procura do que fazer ou do que comer, escondendo a magreza esquálida a um espectador desatento, acreditando este, pelo lapso,  tratar-se de um animal bem nutrido. 
De pelos de um marrom escuro e com algumas manchas brancas encardidas desenhadas ao corpo e de olho esquerdo, definitivamente selado pela paulada certeira recebida do vizinho embriagado, quando este, por engano, (teria sido mesmo engano?) numa noite chuvosa, invadiu o quintal da casa dos Pinto.

Obra de Salvador Dali
Seu Carlos, nunca admitiu a autoria, mas, Élvio, muito esperto, nunca suspeitou de outro se não do vizinho mal encarado e dado, vezes por outra, à cachaçaria e aos chingamentos e, pior, mantinha as constantes conversas, sorrateiras, com sua mãe, Dona Lisa, uma mulher de cabelos claros de quarenta e seis anos, de rosto bonito, mas, sisudo, próprio de beatas de carreira que vêem pecado em tudo e que escondia pelas vestes de cores neutras, um corpo esguio, equilibrado, com busto e glúteos avantajados, bem delineados, sugerindo também possuir um par de coxas sem igual aos quais, desde jovem, foram pretendidos e admirados pelos homens da cercania. 
Era conhecida nas redondezas pelo modo severo com que criara o único filho de pai viajante, desconhecido, que nunca voltou. 
Geralmente ele, Élvio, os via proseando em voz baixa, intercaladas a contidas gargalhadas, (do que riam?) próximos ao muro de metro e meio que dividia mal e tortamente os dois terrenos. 


Nunca compreendera como sua mãe dava a tal sujeito o que ele nunca tivera dela, nem mesmo quando, da única vez em que ficou doente, muito doente, com 45 graus de febre pelo magro corpo estatelado na cama sob os cuidados da única tia, Selena, na época ainda viva e do Padre Gian, que acompanhava sua mãe até sua casa, após a missa da seis. Escondia mágoa por isso.
As manhãs eram iguais, mudando somente em dias quentes e secos, quando podia sair para o trabalho, feliz, (?) vestindo a bermuda estampada, camiseta branca com um coração vermelho ao peito onde se estampou a inscrição I (coração) Juracy e com os tênis rotos de cardarços curtos, ou nos em dias em que amanheciam chuvosos e úmidos quando se cobria com a velha capa plástica preta e calçando as botas de borracha de cano longo que Padre Gian, o alto, lhe dera quando completara 18 anos, sempre foram um pouco apertadas aos pés.
Às dez em ponto, com passos como de um senhor absoluto das obrigações, dirigia-se à garagem da casa assobrada e mal caiada, que fora no passado a residência dos avós maternos, e se é que podemos chamar de garagem o pequeno espaço destelhado, de mato crescido que ficava nos fundos do quintal, próximo de onde Valente dormia. Único ponto do antigo palacete em que sua mãe tolerava a permanência do veículo e a pousada do cachorro. 


Montado e com a chave no contato de sua Honda 125cc, azul retocada à mão, com pneus necessitando de substituição, equipada com um baú amarelo canário, preso ao que seria o assento traseiro onde acomodava-se um antigo gravador de fita K7, Akay, um pequeno amplificador CCE e dois altos falantes sem marca de som estridentes, que ficavam presos pelas braçadeiras de alumínio escurecido, bem aparafusados, fixos ao corpo da motocileta. 


Como nos trios elétricos dos carnavais baianos, saía pelas ruas a tocar bem alto a seleção musical cuidadosamente preparada por ele nas folgas das tardes de domingo, só de canções do Rei, Roberto Carlos, Odair José e Reginaldo Rossi, seus ídolos, entre elas seguiam os anúncios acalorados, gravados por ele mesmo no banheiro de casa quando a mãe, Dona Lisa, não estava, das ofertas e liquidações encomendados pelos proprietários das lojas de móveis, armarinhos, bazares, farmácias, açougues e quitandas da pequena e quase pacata, Juracy. 
Élvio, o ET, sentia-se o publicitário, sabia que era um.


continua...

04/09/2011

"Senhor Ladrão"


Anúncio encontrado na Internet - Não conheço a procedência.

Prometo sigilo absoluto, pois não desejo ser preso por receptação de produto roubado.
Seria o “La garantia soy jo” ?
Da faixa acima o que feriu minha atenção, além do anúncio em si, que, de maneira absurda, bem retrata a realidade fantástica que vivem as pessoas desse país chamado Brasil, foi a garantia proposta pelo resignado comerciante.  
Ele oferece ao leitor, entre eles, o algoz, supondo ainda que saiba ler, a compra dos produtos que eventualmente seriam abstraídos de sua loja, através de um acordo comercial sigiloso, por debaixo do pano. Um acordo na base do “vamos dar um jeitinho nisso, deixa comigo e tudo bem”. A coisa se instalou mesmo.
Muito educado ele se expressa com um português bastante razoável e nitidamente cansado de ser roubado apela para a comunicação direta, franca, buscando o alvo com eficiência, dirigindo-se ao público em geral, indiscriminadamente, sem rodeios. Portanto, sem discriminações. Ele, além de tudo, deseja estar politicamente correto e contemporâneo à hipocrisia estabelecida.

Todos são suspeitos até que se prove o contrário e em sendo assim propõe a criação de regras mais objetivas e consequentemente, mais estáveis para o seu negócio. Foi o que concluiu o míope comerciante.
É no mínimo patético viver numa terra onde todos se confundem. Honestos e não, caem num grande caldeirão e misturados transformam-se numa sopa azeda, onde os espertalhões certamente se colocam como tempero dando o sabor à canja. 


Não há um único dia em que não nos deparamos pelos jornais, rádios, TVs e Internet com reportagens sobre corrupção, tráfico de influência, lavagem de dinheiro e outras falcatruas, onde não estejam envolvidos deputados, senadores, ministros e demais categorias de políticos.
São patéticas as tais Comissões de Justiça e Ética, CPIs e outras denominações promovidas por essas figuras exóticas e absolutamente descartáveis. Eles dão o tom indignado aos seus discursos em palanques e diante das câmeras e microfones a eles oferecidos gratuitamente (?) pela imprensa. Certos da atenção dos espectadores, falam como se não compactuassem com a ética, subversivamente, corporativista da classe, a mesma ética usada por traficantes, assassinos, estupradores e batedores de carteira. Seriam eles membros dessa outra classe também?
Assistimos resignados diariamente o show macabro dos micróbios que se tornaram o tempero da sopa azeda. Complacentes e levantando bandeiras de partidos políticos (vejo todos iguais, alguns um pouco mais iguais que outros), os elegemos a cada ano para o perpétuo controle do espetáculo medíocre da cena brasileira.
Aceitar ser confundido com um bandido nos faz, de certa forma, bandidos também. Aceitar a ideia com a argumentação da sobrevivência, do natural e do óbvio pelas circunstâncias, altera a percepção do transparente, deforma a visão.


Quando nos deparamos com anúncios escancaradamente transgressores como o visto acima, rimos das nossas próprias mazelas, da nossa condição de povo sem pátria, sem lei, sem nada. Assim admitindo nossa condição de colonizados, sem identidade, despersonalizados.


Quando elegemos corsários que se travestem de "homens públicos" e admitimos suas regras, as quais, aliás, não participamos diretamente, que não as julgamos e claramente mentirosas, unilaterais, acobertadas pelo discurso pseudo democráticas, nos travestimos de cidadãos. Vira um circo. É tudo uma grande mentira. Eles são todos iguais, absolutamente iguais. Todos, sem exceção.
Portanto, caro comerciante, não gaste a tinta e nem seu tempo comigo. Se você insistir com essas ideias, digo com todas as letras, vá se ferrar! Você e seu novo amigo ladrão. Se candidate, você se parece com um deles, sem pai identificado.





03/09/2011

Dias sem tsunamis.

Ontem foi meu primeiro dia de férias. Depois de uns 4 anos e meio, mais ou menos, consegui tirar uns dias para mergulhar na famosa "merecidas"
Não são muitos dias, apenas dez, contanto com dois sábados e dois domingos, sendo que, dois deles, nesse período conto como se fossem minhas folgas normais - de direito, como se diz. 
Pela minha atividade até, mesmo nas folgas, não me desligo completamente, como deveria fazê-lo. Acabo levando serviço pra casa às sextas feiras e leio emails pelo celular durante o sábado e domingo me envolvendo nas questões da TV e também porque os amigos pessoais, inocentemente e curiosos me perguntam sobre o meu trabalho durante a minha folga, tolhendo assim o relaxamento. Por favor amigos, estou de folga.
Além do fato que hoje em dia os televisores estão ligados em todos os lugares e quando me dou conta, estou eu lá querendo saber qual canal e o que estão transmitindo, assim me lembrando do trabalho. Portanto, normalmente, as minhas folgas são - mais ou menos folgas.
Considerando que na próxima semana teremos um feriado na quarta feira - dia da Independência, que teoricamente não trabalharia, líquido, em dias úteis, fiquei com quatro dias de férias. Quatro dias e uma sexta, que foi ontem, a qual matei conseguindo juntar à matemática da ausência temporária o número redondo de dez. Dez longos dias.
Planejei essas férias minúsculas pela pouca disponibilidade de tempo que tenho, vivo cercado de responsabilidades. Minuciosamente, arquitetei o plano nas caladas noites, na cama, elaborando tudo como se fosse um crime perfeito, sem deixar pistas. Desenhei passo a passo a fuga com pelo menos dois meses de antecedência.
Sem viagens longas dessa vez, pretendidas inicialmente aos países do leste europeu. Marcadas e canceladas deliberadamente por mim mesmo e bem decididas, sem frescuras. Muito menos queria ficar em casa onde seria bombardeado pelas eternas histórias da Miriam, nossa empregada há mais de vinte anos e, inevitavelmente, ao som do rádio e de tv's ligados. Não considerei arriscar essa hipótese nem por um minuto.
Um sujeito com 57 anos de idade que trabalha como um alucinado desde os 14 e ainda precisando mendigar para si próprio suas férias, pode apontar para alguma coisa de séria. Me pareceu latente - concluí que tem coisa errada comigo ou no modo de vida que levo. Por que que não poderia sumir por trinta dias, como muitos fazem? Não dava, não deu. E pior, constato que hoje, ainda no segundo dia da breve fuga o friozinho na barriga persiste. A ansiedade e a sensação de vazio me acompanham por onde eu for. Me perdoem a lamúria que parece exagerada, não é da minha intenção aborrecer a quem me lê, até porque, sei que podem virar a página e sair daqui a qualquer momento.
Aos que ficam digo que em minha vida tive poucas e verdadeiras férias. Algumas inesquecíveis, alegres, muito boas. Pude viajar para lugares do mundo aos quais sonhava conhecer desde a infância. Estive neles de corpo e alma, ao vivo e à cores, em 16 x 9 HD e em 3D. 
É fantástico botar os olhos e sentir os ventos dos lugares que sempre fizeram parte dos nossos sonhos. A gente quer pegar o que vê e levar pra casa, acho que por isso fotografamos e filmamos tudo e compramos bugigangas inúteis só para provarmos à todos e a nós mesmos quando voltamos, que tudo foi real, aconteceu. 
Tenho comigo que viajar é a coisa mais gostosa que existe, nada supera os dias que antecedem a data do embarque e dos próprios dias da viagem. Seja lá para onde eu vou. Acho que nem mesmo estar com mulheres das mais sensuais ou comer doces caseiros superam o prazer que tenho em sair pelo mundo.
Lembro de férias onde fiquei por aqui mesmo, por estar duro, sem dinheiro só me restando curtir o nada à fazer, em casa, ou, quando muito, dando uma esticadinha de poucos dias até a praia. Praia Grande, no Boqueirão, Cidade Ocian, Mongaguá, as mais frequentes.
Acho que são esses os nomes que damos aos municípios da baixada santista, que pra nós paulistanos vira tudo, Santos. 
Dividia as despesas e o aluguel de casas ou apartamentos pequenos e semi mobiliados com amigos e parentes para quatro ou cinco dias no máximo e com valores chorados e fora de temporada, pois ficava mais em conta nesses períodos, assim garantiamos as "merecidas"
Me divertia vendo as pessoas barrigudas e avermelhadas de corpo branquelo ao sol escaldante, lambuzadas de protetores solares e areia, estiradas nos tapetinhos de palha "pegando uma cor”. (roxa)
Com os que saboreavam os camarõezinhos no espeto vendidos pelos ambulantes de chapeuzinho e óculos escuros, porções de peixes porquinho, fritos em óleos bem queimados das frigideiras encardidas e vendidas nas barraquinhas que ficavam desordenadamente espalhadas pela orla. 
Ofereciam também cervejas meio geladas, batidas de maracujá com seus abundantes caroços pretos que transbordavam nos copos duplos de plástico, descartáveis, com bastante gelo, estes um pouco escuros, de água de procedência suspeita e pinga, muita pinga. 
Das pessoas que inesperadamente se levantavam e corriam de braços abertos, aos berros em direção ao mar, como numa curta liberdade paranóica, mergulhando nas águas do Atlântico com descuido, de boca aberta, engolindo a água salgada do mar misturada ao xixi dos beberrões e beberronas e possivelmente ao coco dos "diarrentos". 
Essas praias são catalogadas até hoje pelos jornais e rádios como impróprias para o banho. Incrível como somente no período de férias de verão a imprensa aborda esse assunto. 
Ninguém levava a sério a tal poluição até retornarem à São Paulo, quando as micoses e diarréias arrebentavam. Era um pega-pá-capá. O mata-lumbrigas corria solto.
Eventualmente marolas repentinas alcançavam os guardas-sóis desbotados que ficavam espetados na areia, esses que ainda hoje protegem a pele dos mais sensíveis - crianças, pessoas de idade e eu (uma mistura dos dois), inundando as roupas amontoadas entre as cadeirinhas de alumínio, meio amassadinhas, coloridas e com algumas costuras desfeitas que faziam a bunda doer rapidamente. Encharcavam os objetos que as pessoas insistem até hoje em carregar nos convescotes praianos,  molhando também as sacolas lotadas de sanduíches que ficavam meio esmagados de pão Pulmann e patê de sardinha em lata, verde ou vermelha da Coqueiro e as coxas e asas de frangos, fritos no dia anterior, os pastéis de carne, de palmito e tantos outros quitutes, incluindo as grandes fatias de melancia que no alagamento boiavam suavemente lembrando pétalas de rosas vermelhas que se misturavam aos chinelos, toalhas e restos de comidas dos vizinhos também desafortunados.
Era uma correria pra salvar tudo e nem se conhecia na época o termo Tsunami. Agora, anos mais tarde, quando os vejo na TV me recordo de pronto e com nostalgia dos bons e velhos tempos.
Ainda me lembro dos putaqueosparius e caralhos soltos pelos picniqueiros indignados com a natureza perversa que se atrevia a prejudicar o lazer de suas majestades. Alguns ainda em estado de à milanesa, pois sempre tinha um cunhado ou um tio que adorava se enrolar na areia quando saia do mar. Esses eram os que mais se manifestavam.
Na cena era comum as senhoras gordas, com seus uniformes de verão - maiôs anos 50, pretos ou verdes escuros, usando toquinhas azuis claras ou brancas, pra combinar, que serviam de proteção aos cabelos ralos e embranquecidos pelo tempo. Fingiam se afogar, algumas pareciam bem próximas a isso, gritavam desesperadas pedindo ajuda. A mim, diante da reação espontânea das pessoas, me parecia que a comida era mais importante do que os prováveis afogamentos. 
Alguns ainda se dispunham a arrastá-las metros acima como num ato heróico de salvamento. Vem vó… !!!  Mãããe, ajuda a vó !!!. 
Via castelos de areia sendo destruídos. Todos lapidados em estilo gótico, construídos habilmente por meninos e meninas com ajuda dos pais e tios, esses últimos geralmente cumprindo o papel dos legais da família, os brincalhões, os que fazem piadas sem graça - todos sentados à volta da bizarra escultura, preenchendo os andares cada vez mais altos da escultura com a areia escavada, acentuando o relevo surrealista da arquitetura.
Sem falar dos buracos cavados à mão ou com pasinhas plásticas, algumas de cabos quebrados que machucavam as mãos, onde se enterravam até os ombros os primos mais “divertidos”. Tudo fazia parte da festa. 
Naqueles dias nos sentíamos felizes, inclusive eu. Ao menos, procurava passar essa sensação para os meus. Éramos os donos do mundo em férias. 


Nada se comparava ao estar com uma coxa de frango numa das mãos, mesmo com um pouquinho de areia que os ventos inoportunos empurravam ao nosso encontro e na outra, uma Skol de latinha, quase gelada, acabada de sair da caixa de isopor que um dia fora branca. Largado, esparramado pela praia, não se importando com o sol do meio dia que traiçoeiramente, faria a pele da gente estourar em feridas já na segunda feira. Sentindo a onda leve, branda e sorrateira se aproximando aliviando as frieiras dos dedos dos pés. Isso que é vida!

Quanta gente, quanta alegria, a minha felicidade é um crediário quase pago... e uma Brasília amarela.
Hoje, aqui em Piracaia, que em tupy-guarani quer dizer, peixe queimado, ou algo assim, de férias e com os meus pensamentos, recordo dos bons e velhos tempos. Horrível essa expressão. 
Lapsos abruptos de saudade como de uma marola repentina que alaga tudo e leva de nós os bens mais preciosos. Não sou dado a saudosismo, mas viajei.  Me permiti agora criar um verbo que uso no tempo passado: saudosei.
Nesses momentos ela, a saudade, faz a gente pensar que tudo na época era colorido - de certa forma era, mas pensando bem, nem tanto. 
Pessoas e situações permanecem singelas na memória só quando a gente quer. Nessas horas o corpo flutua e invariavelmente alteramos partes da história a nosso favor, fazendo com que à cada empecilho, à cada fato triste, criamos um novo roteiro que nos leva a um final que nunca termina, mantendo a estória somente nas partes agradáveis. 
Somos humanos e podemos sonhar, ainda não pagamos impostos por eles.
Me dou conta, então, que posso sonhar mesmo estando acordado. Na verdade, qualquer um pode. Em  férias ou não, basta tentar. Mas tem que saber sonhar, para não se perder da realidade.
Vou curtir os nove dias restantes das férias e fazer com que minha vida toda seja como este momento - este minuto, sonhando um sonho sonhado, mesmo com o friozinho na barriga que me persegue desde criança. Buscando o passado, mas saboreando o que está presente com os olhos atentos, marcando bem o agora e sabendo que no futuro poderei lembrar desses dias como os bons e velhos tempos. Sem tsunamis, sem marolinhas. E se eles aparecerem do nada mudarei o roteiro a meu prazer, pois eu mesmo faço a minha história. Sempre e sem fim.