14/09/2011

Élvio, o ET de Juracy - II


32 anos, antes.
Quando os primeiros raios de sol despontaram pelo horizonte da pequena e quase pacata, Juracy, ouviram-se gritos ensurdecedores, alucinados, vindos da casa contígua à Igreja da Matriz.

II
__ Padre Romério morreu! Mataram o padre! Ajudem, pelo amor de Deus!  Minha Santa Misericórdia, o que fizeram com ele?
Gritava freneticamente, Dona Esperança, a beata de 67 anos, de corpo franzino, viuva há 34 e sem filhos, que todas as manhãs dirigia-se aos fundos da igreja para o preparo do desjejum do padre Romério que gostava de frutas frescas bem lavadas, pão de milho com manteiga de leite de cabra, um ou dois pedaços de bolo de fubá, finalizando a ceia com um café bem forte e sem açucar, mas, que apesar da boa alimentação matinal e outras tantas pelo dia, sofria pelo mal funcionamento dos intestinos que lhe prendiam as entranhas, dificultando a saída regular dos dejetos orgânicos produzidos pela farta alimentação, por dias seguidos e, que em consequência, a inevitável flatulência, ruidosa e mal cheirosa era sentida e ouvida até mesmo durante a missa dominical e por isso ganhou, às escondidas, o carinhoso apelido de Padre Vento que rapidamente corrigidos quando o fadado padre voltava-se ao interlocutor - Padre Bento, padre, o senhor não ouviu direito.
Dona Esperança em prantos gritava sem parar quando encontrou o corpo do querido padre em meio ao sangue abundante que escorria pela cama de lençóis antes de brancura sem igual, fresco em algumas partes e ressecados em outras. Se espalhava pelo quarto de seis metros quadrados e paredes num bege enegrecido pelo tempo, com uma única janela que ficava do lado esquerdo da porta frontal, entre aberta e se contrapondo à parede que sustentava o crucifixo ligeiramente inclinado, imediatamente acima da cama estreita em cuja lateral direita permanecia um funcional  criado-mudo e nele apoiado uma Bíblia de capa vermelha e com as páginas abertas respingadas de sangue. Quarto que serviu de recolhimento e repouso por muitos anos ao mentor da pequena e quase pacata, Juracy. 
Obra de Salvador Dali
A cabeça separada a meio metro do corpo, caída ao chão, com os olhos que foram um dia esverdeados e inquisidores, vertiam lágrimas e ambos arregalados, apavorados, dirigiam-se com horror a quem os vissem, não importando o ponto de vista do espectador incrédulo. As sobrancelhas grisalhas, compridas e bastante grossas enalteciam o semblante tétrico do morto.
Eles estampavam desespero e davam à mórbida cena, a perfeita percepção de sofrimento a quem fora decapitado por golpes de um facão enferrujado esquecido em pé ao canto, apoiado à parede.


Padre Romério tinha sido assinado de forma brutal, no silêncio da noite, aparentemente sem uma causa, uma razão óbvia. 
Nada subtraído de seus pertences que se encontravam bem arrumados no guarda-roupa que ficava ao lado esquerdo da cama e nem se imaginava quem poderia guardar tamanho rancor ou qualquer tipo de mágoa a ponto de cometer a violência na proporção apresentada. De certo, obra de um raivoso lunático, não católico. Até hoje o autor não foi identificado.. 
Em minutos as pessoas se amontoaram diante e dentro da pequena casa. Incrédulas, curiosas, bestificadas. 
Algumas desmaiavam, outras em total desespero jogavam-se ao chão proferindo palavras incompreensíveis. Pessoas correndo de um lado para outro desorientadas. Uma gritaria generalizada.

O prefeito, Seu Eurípedes da Mata, homem sério e respeitado, calvo e de bigode fino, ex professor da Escola Municipal Henrique de Miranda, que a pouco deixara o mestrado para enveredar-se à vida pública, atendendo aos insistentes apelos de praticamente toda a comunidade (insistentes?). De pijama listrado branco e azul - mudo, sem saber o que pensar, olhava aquilo tudo e limitava-se a pedir de tempo em tempo calma aos mais desesperados. 
Acompanhado da primeira dama, Dona Dorinha, sua esposa, que vestida às pressas uma espécie de sobre-tudo de seda sintética, clara e quase transparente, deixava a gordura em excesso balançar desordenadamente pelo corpo como num efeito de câmera lenta, saltitando com dificuldade e erguendo as mãos aos céus clamando por respostas ao Todo Poderoso. Os chinelos de pelos de carneiro lhe protegiam os pés da friagem que infringiam fortes dores, dado o reumatismo adquirido há muitos anos e com os cabelos desalinhados pela noite bem dormida e despertada pelos gritos vindos do além.
Seu Luis, o dono da loja de móveis popular - Luis Móveis,  jamais perderá qualquer oportunidade de se distrair com a mazela alheia - um fofoqueiro de plantão. A esposa, dona Araci, a replicadora das versões do marido, os filhos, sete ao total e sogra, dona Zuzú, acomodada em sua cadeira de rodas.
Dona Marieta, a enfermeira que acabará de sair do plantão na Santa Casa, embrenhava-se por entre as pessoas para o acesso ao local do crime, guiada pelo Delegado, doutor Mario de Assis e dois policiais.
__ Não mexam em nada, não alterem a cena do crime! doutor Mario repetia.


As irmãs, Jurema, Cotinha, Maria do Rosário e Rosalina, as quatro beatas, bisnetas  do Coronel Porfírio, que foi casado com a filha mais velha do fundador da cidade - petrificadas,  emudecidas, vestiam camisolões brancos, em pé, na calçada diante àquela balbúrdia e falatórios, como quatro estúpidas estatuetas, daquelas que encontramos em feiras de artesanatos.
Gente se aproximando de todos os cantos - homens, mulheres, velhos e crianças, conjecturando explicações de toda natureza.
Até mesmo o doutor Solano Pinto estava lá. Raramente visto em público, o homem mais rico que conheceram os da pequena e quase pacata Juracy. Fazendeiro, plantador de algodão, feijão e milho, importador e exportador de bugigangas e praticamente dono de tudo na cidade, inclusive da rádio AM - Nova Juracy  e pra quem todos rendiam o bom dia, boa tarde e boa noite com servidão. Observava em postura altiva, não escondendo a raiva por algo ter acontecido sob suas barbas sem o prévia autorização. (Teria mesmo?)
Com ele dona Maria Emília, a esposa prendada, bonita e recatada, vinda de terras estrangeiras ainda jovem para casar-se e procriar. Respeitada pela vida regrada e dedicada exclusivamente à família e à Deus, a quem temia fervorosamente. Acompanhados estavam pelas jovens filhas - Edilalva de 17 anos e Doralisa, a mais nova de 15 anos, um tanto quanto rebelde e secretamente admirada pela evidente precocidade pelos moços e marmanjos da região - uma menina que em tão tenra idade despontava na formação de uma atraente mulher.
O pai previa seus destinos à vida num convento. Carinhosamente chamava-a de pequena madre Doralisa. Lisa, pela mãe, nos momentos descontraídos em família. Dona Lisa, respeitosamente, pelos menos próximos.
O dia se prolongou aos prantos. Os dias se prolongaram tristes e alterados. 
No cemitério, um monumento foi construído em pouquíssimos dias,  o maior e mais bonito que alguém pudesse supor, evidente que por ordens do doutor Solano Pinto, mantenedor da igreja, com lei criada e aprovada pela Câmara Municipal, sancionado de pronto, mesmo sem leitura pelo Poder Executivo, com a outorga do senhor Prefeito, Eurípedes da Mata. 
A catedral construída em mármore branco que de longe se avistava pelos quase 30 metros de altura, muito além dos muros do cemitério que ficava um pouco distante do centro urbano.  Adornada por lindos vasos cravejados de pedras brilhantes, guardando flores típicas da região que eram trocadas duas vezes ao dia - também por decreto municipal. As estatuetas de figuras angelicais de rostos parecidos aos das pessoas expressivas da história de Juracy - história passada e recente, em bronze polido, dispunham-se simetricamente nas bordas do monumento e no topo deste a esfinge de 12 metros, imponente do Padre Romério, agora Santo por decreto municipal. Olhar distante e sereno, mão direita erguida de forma segura e decidida e com o dedo indicador que apontava o caminho ao norte.


Na lápide de dois por um metro, toda em ouro, lia-se 

“Sua Generosidade, Padre Romério, a eterna Luz de Juracy”

Por muito tempo na cidade não se falou de outra coisa.
Ao completar cinco meses sem missas, sem desjejuns, sem ventos mal cheirosos e muita fornicação, numa tarde ensolarada as pessoas pararam quando perceberam a aproximação de um homem estranho que aparentava uns trinta e poucos anos. 
Trajava uma batina mal passada e pedalava uma bicicleta de aro 28 preta.
Seguiu firme em direção ao palacete do lado leste da cidade que servia de residência dos Pinto. No local se encontrava o prefeito, Eurípides e algumas autoridades e vereadores aliados.
__ Buona Sera!   B o a   T a r d e !   Ouviu-se a voz pelo portão de ferro.
Com um sorriso cativante, olhar penetrante e sotaque de um imigrante possivelmente do sul da Itália, o homem de corpo esbelto, metro e noventa e cinco, de voz postada e olhar penetrante,  prosseguiu sua apresentação aos ilustres que o bem receberam.


__ Mio nome é Gianne Di Pecchia, il patre substituto di Santi, Romieri - R o m é r i o, come a cá sono - c o n h e c i d o!  Caprichou no português meio que soletrando e no italiano nunca ouvido na região.
No domingo que se seguiu, Padre Gian, rezou a primeira missa na Igreja da Matriz. Às 10 horas da manhã de um domingo bastante quente e de céu azul profundo.
A igreja que andara vazia por meses, estava agora lotada de crentes, até mesmo pelos lados externos. Todos queriam conhecer o novo padre, o novo mentor.

Seja Bem Vindo, padre Gian!
Nos primeiros bancos do salão, isolados por uma faixa plástica amarela e preta, se posicionaram as autoridades para assistir a primeira missa. 
Vereadores com suas famílias; representantes da Liga da Moral e Bons Costumes; o prefeito, senhor, Eurípides da Mata com a esposa, dona Dorinha, esbaforida e calorenta; artistas do rádio, imprensa e convidados. 
Em destaque e cercados por dois enormes seguranças, estavam o Doutor Solano, exibindo o dominical terno branco, bem passado que lhe impunha notoriedade, sua linda e formosa esposa, dona Maria Emília e, claro, as filhas, Edilalva e Doralisa, Lisa. Esta, que nunca tinha demonstrado tendências à religiosidade, encantada ficou com a estranha, simpática, carismática e forte figura que conduzia o rito eclesiástico no altar, Padre Gian. Pareceu-lhe naquele momento, um santo.
A vida retomou na pequena e pacata, Juracy. 
… continua





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