04/03/2012

Coragem

Coragem, meu caro!  É o que precisamos o tempo todo,  eu, você e todos nós.
Não é fácil viver, não é fácil concorrer sem regras claras e muito menos sem a certeza do que alcançar. A sensação é de sobrevivência, somente por sobrevivência, em todos os sentidos. O prazer ficou pra traz há muito tempo e a alegria natural está cada vez mais distante.
Imagino o que passa na cabeça dos animais sem donos, os perdidos pelas ruas. A dor da fome desorienta e a falta de atenção e de carinho humilha a alma.

Fiquei observando dentro do carro enquanto estava parado no trânsito intenso um pobre cachorro magro, um bem esquálido e de olhar tristonho que mal podia caminhar. Cheirava de tempo em tempo alguma coisa pelo chão espantando-se com quem passava próximo a ele.
Acho que foram uns dois minutos de observação. Eu confortavelmente acomodado em meu carro, com ar condicionado depois de ter tomado um bom café da manhã e ouvindo o noticiário e ele, sozinho, com fome e sem ninguém pra dividir a aflição.
Com sorte consegui uma vaga entre os carros estacionados rentes à guia, coisa rara em São Paulo e ainda, sem zona azul. Desci e entrei no bar que ficava bem na esquina movimentada. Pedi duas coxinhas, dois bolinhos de carne e um grande sanduiche com duas salsichas, molho com pedaços de tomate e muita cebola. Alguns pingos vermelhos mancharam a manga da minha camisa quando peguei a comida.

__ Vai beber o que? Perguntou o balconista gordo com jeito de mal educado.
__ Nada, obrigado. É pra viagem. Quanto é?
__ Treze real.

O sujeito me deu o troco de quinze, as duas moedas de um real  foram parar no bolso da calça e saí sem me despedir. Como sempre, atrasado.
Estava o cachorro às voltas com um saco de lixo grande e preto próximo ao poste, resistindo aos ataques desesperados das patas do cão sem unhas, faminto, sem dono. Os restos de comida de dentro do saco o atordoavam.
Sentindo o cheiro vindo do outro canto da calçada e em meio aos transeuntes apressados o pobre animal virou-se e se deu conta de que alguém vinha em sua direção carregando um banquete.
Humildemente baixou a cabeça e se colocou em minha direção. Por uma fração de segundos cruzamos os olhares - olhos nos olhos. A linguagem da alma não precisa de palavras, a natureza nos concede a comunicação por pensamentos. O afeto se estabelece espontaneamente e ela sorri.
Deixei os salgadinhos próximos ao poste bem ao lado do saco de lixo preto e retornei ao carro.
Mal me sentei travando o sinto de segurança e ainda olhei para a mancha vermelha na manga da camisa - puta que o pariu, pensei alto. Voltei-me para o cão - uma das coxinhas e um bolinho de carne já tinham ido. A fome, de certo, era grande.
Consegui sair dali até que facilmente e segui o meu caminho.
O dia foi normal, disse não à meio mundo. Me rogaram pragas, assim como eu os roguei. Me disseram nãos e sins, como todos os dias acontece com todos.
No dia seguinte passei pelo mesmo lugar. Outro saco de lixo preto estava amontoado próximo ao poste e dentro do bar vi o balconista gordo atendendo com sua cara fechada um cliente, servindo a este um café. 
Dessa vez o cão não estava lá. Entre, eu no carro e o gordo do balcão, pela calçada seguiam os apressados. 
Olhei para a manga da camisa que reluzia o branco que refletia a luz do sol forte da manhã quente de mais um dia de sins e nãos.
Ouvi o comentarista no rádio dizer - vamos em frente meu caro, há de se ter coragem.








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