29/03/2013

Sem cotas, sem esmolas, por gentileza.

EM TEMPOS DE FELICIANO, DE COTAS, DE BOLSAS E SEGREGAÇÕES DE TODA NATUREZA.
Duas da manhã e a família aguarda na sala de espera do hospital. 
O primeiro filho, o primeiro neto, o primeiro da nova geração está para chegar. Os exames foram feitos, a assistência foi plena durante a gestação e a futura mamãe sentia-se segura e feliz. Todos estavam felizes. 
Pais dos pais, o pai, os irmãos, as irmãs, tios e tias, sobrinhos e sobrinhas e ainda três dos amigos mais próximos, vinte e duas pessoas esperavam o nascimento do bebê. Os pais optaram por não saberem antecipadamente se viria um menino ou uma menina.
O médico chega à sala ainda com o avental verde-claro, toca sobre a cabeça e o tapa-nariz dependurado ao pescoço, atravessa a porta vai-e-vem um pouco pensativo. O silêncio se estabelece. 
__ Doutor, tudo bem? Adiantou-se o pai aflito. 
__ De certa forma, sim. A paciente está passando bem, graças a Deus, e descansa agora. Tivemos algumas complicações mas conseguimos superá-las. 
__ E a criança, doutor? Gritou uma tia lá do fundo.
__ A criança está bem, senhora, podemos dizer que também descansa. 
__ Podemos vê-la doutor? Quatro ou cinco perguntaram ao mesmo tempo. 
__ Daqui a pouco a enfermeira trará a… a criança até vocês. Tudo em ordem. Agora preciso ir, com licença, tenho outra parturiente me esperando. Boa sorte e… parabéns!  Virou-se e sumiu. 
O grupo não sabia se comemorava. Perceberam o médico um pouco estranho. Faltou um sorriso nos lábios dele. 
__ Que médico antipático… Resmungou  a tia rabugenta. 
Dez minutos depois chega a enfermeira com o bebê no colo, envolto e aquecido pelos cobertores. Mal se via o recém nascido. 
__ Vocês são os parentes? 
__ Sim. Adiantou-se a avó materna …deixa eu ver a minha neta, quero sentir as mãozinhas dela, sou louca por mãozinhas de bebês, sabia gente? Olhando pra todos.
Safou-se a enfermeira. 
__ Ah! Temos um pequeno problema, mas não se preocupem, nada de mais sério… bem… a criança está bem, mas, infelizmente ela nasceu sem as mãos. 
Susto geral. Ouviu-se: Meu Deus daqui e Minha Nossa dali.
 __ Tudo bem, hoje em dia as próteses estão avançadíssimas. Algumas até escrevem sozinhas. Disse alguém tentando amenizar a surpreendente notícia. 
__ Então… nos deixe ver os pezinhos. A avó paterna complementou.
__ Ah, lamento, senhora. Também, sem que saibamos o motivo, ela não tem  pés e… lamento informar… nem pernas. 
O pai jogou-se ao sofá e começou a chorar. Do criado falatório não se compreendeu nada. Os sobrinhos tentavam esconder o deboche, até que um dos tios soltou: 
__ Puta que o pariu, como assim, caralho?
__ Enfermeira, nos mostre o narizinho, a boquinha… as bochechinhas rosadas e gorduchinhas… Exigiu a tia austera na cadeira de rodas.
__ Não sei como explicar… Disse a enfermeira constrangida. 
__ O que é agora? O grupo interpelou. 
__ É que, na verdade… bem, na verdade… (silêncio) …a criança nasceu sem  cabeça. 
Durante uns quinze segundos não se ouviu um único ruído na sala. Todos permaneceram calados, de olhos arregalados, esperando explicações da enfermeira. 
__ Como assim, que catso é isso?  Interpelou o avô materno. 
A enfermeira sem saber o que dizer foi descobrindo a criança. As vinte e duas pessoas da sala a cercaram, curiosos. 
Ouviu-se um Oh!!! prolongado. Soou como um coral presbiteriano apresentando-se em noites de natal. 
__ Uma orelha? Minha filha é uma orelha! Mas que Linda orelha ela é!  Disse o pai engasgado, recebendo em seguida os cumprimentos de todos. O clima de alegria se estabeleceu. 
A enfermeira corrigiu: 
__ É lindo, pai, é um menino. Apontando para um prenúncio logo abaixo do corpo. 
O bebê nasceu gordo, pesando três quilos e meio e medindo quarenta e cinco centímetros. Aparentava boa saúde. Pele rosada e gorduchinha. 
__ Posso segurar ela, quero dizer, ele? A avó foi logo arrancando dos braços da enfermeira seu querido neto. 
__ Quem é o bonitinho da vovó?  Bilu… bilu… bilu… Olha… parece com o pai quanto nasceu. Lindinho da vovó
__ Desculpe, senhora. Fale um pouco mais alto, ele tem uma pequena deficiência auditiva. Quando crescer possivelmente vai precisar de aparelho.
O filho, o neto, o sobrinho, o primo, o lindo bebê foi recebido com todo carinho do mundo. Seria mais um na família e não contaria com privilégios e nem assistencialismos, esses disfarçam preconceitos. A família sabe bem disso. 

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