Sem cotas, sem esmolas, por gentileza.
EM TEMPOS DE FELICIANO, DE COTAS, DE BOLSAS E SEGREGAÇÕES DE TODA NATUREZA.
Duas da manhã e a família aguarda na sala de espera do hospital.
O primeiro filho, o primeiro neto, o primeiro da nova geração está para chegar. Os exames foram feitos, a assistência foi plena durante a gestação e a futura mamãe sentia-se segura e feliz. Todos estavam felizes.
Pais dos pais, o pai, os irmãos, as irmãs, tios e tias, sobrinhos e sobrinhas e ainda três dos amigos mais próximos, vinte e duas pessoas esperavam o nascimento do bebê. Os pais optaram por não saberem antecipadamente se viria um menino ou uma menina.
O médico chega à sala ainda com o avental verde-claro, toca sobre a cabeça e o tapa-nariz dependurado ao pescoço, atravessa a porta vai-e-vem um pouco pensativo. O silêncio se estabelece.
__ Doutor, tudo bem? Adiantou-se o pai aflito.
__ De certa forma, sim. A paciente está passando bem, graças a Deus, e descansa agora. Tivemos algumas complicações mas conseguimos superá-las.
__ E a criança, doutor? Gritou uma tia lá do fundo.
__ A criança está bem, senhora, podemos dizer que também descansa.
__ Podemos vê-la doutor? Quatro ou cinco perguntaram ao mesmo tempo.
__ Daqui a pouco a enfermeira trará a… a criança até vocês. Tudo em ordem. Agora preciso ir, com licença, tenho outra parturiente me esperando. Boa sorte e… parabéns! Virou-se e sumiu.
O grupo não sabia se comemorava. Perceberam o médico um pouco estranho. Faltou um sorriso nos lábios dele.
__ Que médico antipático… Resmungou a tia rabugenta.
Dez minutos depois chega a enfermeira com o bebê no colo, envolto e aquecido pelos cobertores. Mal se via o recém nascido.
__ Vocês são os parentes?
__ Sim. Adiantou-se a avó materna …deixa eu ver a minha neta, quero sentir as mãozinhas dela, sou louca por mãozinhas de bebês, sabia gente? Olhando pra todos.
Safou-se a enfermeira.
__ Ah! Temos um pequeno problema, mas não se preocupem, nada de mais sério… bem… a criança está bem, mas, infelizmente ela nasceu sem as mãos.
Susto geral. Ouviu-se: Meu Deus daqui e Minha Nossa dali.
__ Tudo bem, hoje em dia as próteses estão avançadíssimas. Algumas até escrevem sozinhas. Disse alguém tentando amenizar a surpreendente notícia.
__ Então… nos deixe ver os pezinhos. A avó paterna complementou.
__ Ah, lamento, senhora. Também, sem que saibamos o motivo, ela não tem pés e… lamento informar… nem pernas.
O pai jogou-se ao sofá e começou a chorar. Do criado falatório não se compreendeu nada. Os sobrinhos tentavam esconder o deboche, até que um dos tios soltou:
__ Puta que o pariu, como assim, caralho?
__ Enfermeira, nos mostre o narizinho, a boquinha… as bochechinhas rosadas e gorduchinhas… Exigiu a tia austera na cadeira de rodas.
__ Não sei como explicar… Disse a enfermeira constrangida.
__ O que é agora? O grupo interpelou.
__ É que, na verdade… bem, na verdade… (silêncio) …a criança nasceu sem cabeça.
Durante uns quinze segundos não se ouviu um único ruído na sala. Todos permaneceram calados, de olhos arregalados, esperando explicações da enfermeira.
__ Como assim, que catso é isso? Interpelou o avô materno.
A enfermeira sem saber o que dizer foi descobrindo a criança. As vinte e duas pessoas da sala a cercaram, curiosos.
Ouviu-se um Oh!!! prolongado. Soou como um coral presbiteriano apresentando-se em noites de natal.
__ Uma orelha? Minha filha é uma orelha! Mas que Linda orelha ela é! Disse o pai engasgado, recebendo em seguida os cumprimentos de todos. O clima de alegria se estabeleceu.
A enfermeira corrigiu:
__ É lindo, pai, é um menino. Apontando para um prenúncio logo abaixo do corpo.
O bebê nasceu gordo, pesando três quilos e meio e medindo quarenta e cinco centímetros. Aparentava boa saúde. Pele rosada e gorduchinha.
__ Posso segurar ela, quero dizer, ele? A avó foi logo arrancando dos braços da enfermeira seu querido neto.
__ Quem é o bonitinho da vovó? Bilu… bilu… bilu… Olha… parece com o pai quanto nasceu. Lindinho da vovó…
__ Desculpe, senhora. Fale um pouco mais alto, ele tem uma pequena deficiência auditiva. Quando crescer possivelmente vai precisar de aparelho.
O filho, o neto, o sobrinho, o primo, o lindo bebê foi recebido com todo carinho do mundo. Seria mais um na família e não contaria com privilégios e nem assistencialismos, esses disfarçam preconceitos. A família sabe bem disso.
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