23/02/2013

Agulha no dedo

Estava sentado no muro de casa olhando a rua deserta. Devia ser umas duas da tarde e o sol do verão de 1963 castigava a gente, ainda mais, eu, um garoto de 9 anos que detestava dias quentes. Tinha almoçado há pouco e o sono da tarde, que desde aquela época me acompanha, me abatia. Eita preguiça que dá depois do almoço! 

Minha vontade sempre foi de me estatelar numa rede e me deixar levar pelos sonhos durante a tarde. Raramente pude fazer isso na vida. Então aprendi a sonhar acordado todo início de tarde. Aprendi ainda que, em determinadas circunstâncias, melhor mesmo é nem almoçar, assim o sono não me amolece. Quando não almoço esta parte do dia é o de maior rendimento para mim. Coisa quem nem Freud explica.

Ninguém na rua, ela estava completamente vazia, uma alma viva se quer eu via se atrevendo a desbravar aquele Saara do capeta. Só eu mesmo poderia estar ali debaixo de um calorão daqueles, um perfeito barnabé.
O muro tinha quatro colunas que se destacavam do restante da parede que separava o terreno de casa com a calçada da rua. O espaço entre essas colunas era de uns dois metros e meio e um menor onde ficava o portão de entrada da casa, que tinha ripas grossas de madeira pintadas com tinta verde. Este vão tinha um metro e vinte de largura, mais ou menos.
Olhei para aquelas colunas de cimento cujos topos em plataformas quadradas de uns sessenta centímetros cada, que recebera um assentamento bem liso e imaginei que poderia pular uma a uma sem muito esforço e para tanto compreendi que seria mais seguro experimentar pelo vão menor.
Mesmo com o sono me corroendo me levantei e fiz um primeiro teste. Saltei o vão menor com muita tranquilidade. Saltei novamente e mais uma vez e mais outra e outra. Estava fácil demais. Confiante, decidi saltar agora usando somente um dos pés - pé direito aqui e pé direito ali. Espetacular, consegui de primeira e com bastante equilíbrio. Ouvia a platéia pedindo bis, os aplausos explodiram aos meus ouvidos.
Pensei comigo: quem sabe a Ideli esteja me observando e finalmente iria notar o menino que todos diziam ser muito atrevido. Com certeza ela iria se apaixonar por mim e eu, finalmente, teria a atenção da menina mais bonita da rua.
Olhei para os outros lances, os de dois metros e meio de vão. Nem o calor intenso da tarde compensou o frio na barriga que senti. Lá de cima aos coisas eram diferentes, percebi que não iria conseguir. Mas e se a Ideli estivesse mesmo me olhando pelo vão da janela. Se eu conseguisse então, pra ela eu seria o mais corajoso dos meninos que conheceu na vida. Um menino homem, valente, um super herói.
Mas, não. Disfarcei um pouco e dei meia volta. De alguma forma não poderia mostrar que eu estava com a intenção de pular aquela distância tão grande. Senti um pouco de vergonha mas acho que fui um bom interprete, fui sensato sem saber direito o que isso significava.
Outra ideia me ocorreu. Saltaria as colunas já conquistadas de forma diferente. Colocaria um dos pés no ar,  o esquerdo, bem entre elas, no espaço e muito rapidamente levaria a outra perna para alcançar a coluna seguinte. Grande ideia para um número de matinê do Grande Circo Norte Americano. Para isso me preveniria, eu deixaria o vão aberto para não esbarrar o pé no portão e consequentemente cair, evitando um vexame histórico diante da princesa que a essa altura tinha certeza que me observava. E também o pé no ar seria melhor notado por todos. Ah! Só faltava mesmo alguém fotografando aquilo tudo! Que sonho!
Preparei o salto, cumpri o ritual da exibição imaginando o público em silêncio, aflito, agoniado, aguardando o gran finale. Ideli se derretendo por mim. O maior equilibrista saltador de todos os tempos, o seu grande amor, o menino mais corajoso do mundo se preparando para o espetáculo definitivo.
Subi pelo muro com movimentos dignos de um profissional circense, me sentia mesmo o máximo. A platéia agonizante, Ideli com os olhos arregalados temendo pela vida de seu herói e eu no centro do picadeiro. Tudo escuro, somente um facho de luz acompanhava meus movimentos.
A lei da gravidade foi determinante mais uma vez. Não a conhecia até esse dia, pelo menos nunca tinha me dado conta de sua eficiência. No que coloquei o pé no ar, sem apoio algum e com o corpo em posição para o salto, ligeiramente inclinado para frente, a queda foi inevitável e muito rápida. Bati a cabeça na coluna com toda a força, a coluna a qual deveria alcançar a perna direita na velocidade da luz. Outra lei da física que descobri nesse dia, nenhum corpo trafega no espaço a 300 mil quilômetros por segundo sem que se desintegre.
O que quase se desintegrou mesmo foi minha cabeça. Desmaiei no impacto. Me lembro acordar minutos depois completamente atordoado no colo da dona Iracema, a mãe da Ideli, esta sim me espreitava pela janela. Ela me socorreu e me levou para dentro de casa aos gritos, onde minha mãe quase desmaiou pelo susto quando viu o filho mais velho, o problemático, como ela sempre dizia, o de nove anos metido a besta, completamente ensanguentado. Perdi o sentido novamente. Pensei ter morrido.
Acordei tempos depois num lugar estranho, parecia um hospital. Estava num pronto socorro na verdade e cercado de gente, todos vestidos de branco. Na maca ao lado uma mulher estava sendo atendida ao mesmo tempo e chorava muito, ouvi alguém dizendo que ela tinha um pedaço da agulha da máquina de costura enfiada no dedo da mão. Achei que ela estava com mais problema do que eu. Me costuraram a pestana direita e nela deixaram para sempre seis pontos mal alinhados e um curativo que tapou o olho por alguns dias. Berrava mais que podia e menos que queria. Acho que ainda não tinham inventado a anestesia, só podia ser.
A cicatriz se esconde por debaixo dos pelos da sobrancelha direita até hoje. Somente as pessoas mais próximas a mim sabem que ela existe. Mesmo assim nem se lembram dela. Acho que se incorporou ao meu rosto como os aros dos meus óculos.
A Ideli soube depois da minha atuação mal sucedida, ela veio me visitar no dia seguinte com alguns biscoitinhos que dona Iracema tinha feito para mim. Costume da época. Agradeci com um sorriso envergonhado tentando esconder a enorme quantidade de esparadrapo que cobria boa parte minha testa. 

As recomendações dela foram para eu deixei de lado minha motivação para espetáculos de exibicionismo. Depois desse dia optei pela cautela e nessa linha a minha conduta como um todo - com tudo e com todos, mesmo eu sendo por natureza, um gigantesco exagerado, Ninguém me espreita, isso seria paranóia. E caso, eventualmente, queiram fazer isso, pois que façam. Não devo me preocupar com uma hipotética platéia. Melhor mesmo é dormir depois do almoço ou não almoçar quando não for possível tirar uma pestana em seguida. É mais seguro.

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