15/02/2013

1962


O primeiro som que ouvi quando despertei foi o do rádio ligado. Alguém falava alguma coisa com muito entusiasmo e eu não entendia direito o que diziam. Parece que os jogadores da seleção que estavam no Chile desembarcaram no Aeroporto de Congonhas a pouco e uma multidão em delírio absoluto os recebiam. O locutor praticamente gritava sem parar: Minha gente, o escrete canarinho chegou e agora na condição de bi campeão do mundo. Brasil, Brasil, bi campeão mundial de futebol! Suécia em 58, Chile em 1962. Viva Jânio! Viva o Brasil! Viva a República brasileira!  
Vi minha mãe cruzando a sala, saindo do quarto em direção ao banheiro. Senti os pés do meu irmão resvalando aos meus e notei que ele ainda dormia e que estávamos no velho sofá-cama da sala de casa, um aos pés do outro. A luz por entre as cortinas avermelhadas e floridas que cobriam a janela, bem ao nosso lado, quebravam a escuridão.
O locutor de voz grave da rádio Bandeirantes, disse ainda: São sete horas e quatorze minutos na capital bandeirante. Hoje o Brasil está em festa para receber os heróis de Santiago.
Embora estivesse com as ideias ainda confusas pelo dia iniciando, um lapso de alegria me bateu de pronto - lembrei-me de que estávamos em 18 de junho de 1962 e naquele dia eu não teria aula, ninguém teria aula, saboreávamos uma espécie de feriado nacional, graças à chegada da seleção vitoriosa e o Brasil todo estaria pronto para  recepcioná-los, comemorando o título de Bi Campeão da Copa do Mundo daquele ano. O Brasil vencera a Tchecoslováquia no dia anterior, domingo, e sagrou-se o campeão. Portanto, hoje era uma segunda feira, porém, uma segunda feira diferente, das boas, sem aulas. Só festas. Uau!
Logo depois do anúncio da hora certa ouvi a música:  
Verde, amarelo, cor de anil, são as cores do Brasil. Vencemos o mundo inteiro, melhor no futebol são os brasileiros. Salve a CBD, jogadores, diretores. Salve, oh pátria varonil! Campeões do mundo, Brasil!

Fui dormir na noite passada acreditando que éramos de verdade os maiores do mundo. Até me emocionei. Nós todos nos emocionamos, o país inteiro se emocionou. Naquela copa tínhamos jogado com a Tchecoslováquia no segundo jogo e foi difícil segurar o zero a zero ou um a um. Só sei que chorei e chorei muito e com discrição, pois não queria que ninguém percebesse que eu chorava feito uma menina. Mesmo sendo uma criança, fazia de tudo para me mostrar à todos que eu já era bem grandinho, um homenzinho. Pelo menos me esforçava para isso. 
Me lembrei que a cada gol que ouvíamos pelo rádio, em casa ouvíamos a  Bandeirantes, naquela tarde ensolarada de 17 de junho de 1962, um domingão quente, eu corria até o muro da frente de casa, me sentindo o próprio herói nacional e com a espada em riste, uma de madeira que eu mesmo havia construído, para me passar por Zorro aos meninos e meninas, subindo na parte mais alta do muro, eu berrava endoidecido: Brasil, Brasil! Eu venci! Eu sou o maior! Se o Pelé tivesse jogando seria doze a zero e não três a um. Eu sou o máximo!
A rua Cônego José Norberto, 256 no Jardim Brasílio Machado, distrito do Ipiranga, uma rua larga e ainda de terra batida, estava cheia de gente, muitas pessoas felizes festejando os gols brasileiros e logo depois do apito final, a vitória, a consagração. A vizinhança se abraçava, as crianças pulavam loucamente e se jogavam ao chão sujando-se à vontade. Tudo foi permitido naquela tarde. Até mesmo dona Encarnação, que raramente colocava-se ao portão, esboçava nesse dia um sorriso largo de portuguesa bigoduda.
Em meio a tudo isso me lembro que gritei: Independência ou Morte, thecos de uma figa! Até hoje não entendi direito o que quis dizer com essa frase. Acho que, além do Zorro, Don Pedro I tinha se tornado mais um herói na minha vida.  Dona Cida, a professora do segundo ano, provavelmente fizera a lavagem cerebral perfeita nos meus miolos de oito anos.

Vi meu pai saindo do quarto às pressas indo ao banheiro e minha mãe saindo de lá para seguir até a cozinha preparar o café. No caminho ela olhou para mim e disse friamente: levanta da cama, se você já abriu os olhos, já está acordado, mas não acorde seu irmão que ainda dorme.
A voz dela estava diferente, menos rouca, parecia a voz de uma mulher com menos de trinta anos. Ela aparentava ser bem mais nova naquela manhã, mesmo com aquele coque horrível na cabeça, meio desalinhado pela noite de sono. E o vestido azul claro, de tecido grosso, um pouco desgastado, há muito não o via, mas caia-lhe bem. O que era aquilo? Pensei.
Antes de chegar na cozinha ela voltou-se de súbito para buscar o rádio Zilomag que estava sobre o criado mudo em seu quarto. Quando ela ligou o rádio novamente eu ouvi o locutor enaltecendo os lances do jogo de domingo, dos grandes lances dos heróis nacionais. A música não parava de tocar. Era Brasil daqui e Brasil de lá.
Caiu a ficha. Meu coração disparou e eu pensei que fosse desmaiar. Tirei as cobertas que me protegiam do frio e me coloquei em pé, num movimento rápido sem igual.
Olhei para os lados e mesmo às escuras, vi a televisão Invictus de 21 polegadas desligada, o regulador de voltagem sobre a TV. Os fios desses aparelhos que alcançavam a meia altura da parede,  embaralhados entre si. A mesa de centro retangular deferro encapada com fios de plástico, com um vaso branco imitando porcelana cheio de flores plásticas coloridas que cheiravam muito forte. Vi a armação fina de ferro preto, que mais parecia um arame grosso, que fazia um tripé de sessenta centímetros de altura, que sustentava um cone de alumínio de laterais onduladas, esverdeado e nele se encaixava um cinzeiro cor de ouro, também de alumínio, com algumas bitucas de cigarro por dentro. O detalhe é que na base do tripé ainda existia um local para se guardar revistas. A peça de designer vanguardista estava ao lado do sofá menor para comodidade do patriarca da mansão.
Algumas folhas de jornais abertas espalhadas pelo chão como se fossem tapetes persas para proteger os tacos de madeira super limpos e lustrados. Minha mãe insistia em mante-los brilhantes. A sala cheirava à cera Parquetina.
O que estava acontecendo? O que eu fazia ali? Olha pra mim, um moleque de uns oito anos e sem óculos? E esse pijama ridículo de flanela listrada? Olha o bolso, continua furado desde quando eu era garoto? 
Meu pai passou por mim e me deu um sorriso discreto. Pediu em voz baixa para que eu cobrisse meu irmão. Eu obedeci. Pasmo, notei a voz dele e ele todo muito mais novo! Não entendia nada do que estava acontecendo.
Na rádio o locutor pediu ao repórter presente no aeroporto para que narrasse o que via. A multidão enlouquecida, os jogadores descendo pelas escadas do Electra. Em meio a tantas vozes e gritos, o jogador Amarildo, o que substituiu Pelé logo no segundo jogo da Copa, contou que estava muito feliz e que todos deveriam comemorar a vitória, afinal, a Copa do Mundo é nossa, com brasileiro não há quem possa. O marechal da vitória, Paulo Machado de Carvalho também se expressou ao microfone do repórter: É um dia de muita felicidade para a nação brasileira. O Brasil é bi campeão e o mundo agora ajoelha-se aos nossos pés.

Do nada, como num filme de viagem no tempo, tudo ficou em absoluto silêncio. Eu ouvia zunidos incompreensíveis.  Fiquei parado, estatelado, quieto na sala, olhando para todos os detalhes, das paredes de reboque de mau acabamento, à porta da sala de acesso ao terraço ainda fechada. Vi suas ranhuras de madeira antiga com a tinta marrom que se sobrepondo à tantas outras camadas de tintas que recebera pela vida, tornara-se grossa e desajeitada.
Por bons minutos fiquei paralisado, olhando tudo aquilo que julgava até então fazer parte de um passado distante, um período da minha vida, da minha infância. Detalhes esquecidos na memória de um homem quase sexagenário.
O cheiro da cera me incomodava. Me lembrei da palha de aço que cortava as mãos e com ela raspávamos o piso todo, retirando com muita força a crosta de cera da semana anterior. Meu irmão e eu, todas às sextas feiras e sábados, tratávamos dos tacos dispostos simetricamente pelo piso, de quatro em quatro - em pé e deitados, alternando-se em grupos, deixando harmoniosos os desenhos pelo chão, tanto da sala quanto do dormitório. Depois encerávamos tudo com dois pedaços de pano que às vezes vinham ressecados pelo uso da última vez. E no final, o lustro, o qual fazíamos com uma blusa de lã preta, velha e rasgada, esfregando ela por todo lado até o chão ficar totalmente lustrado. Era assim que minha mãe queria.

Respirei fundo, busquei equilíbrio e me concentrei. Criei coragem para dar alguns passos à frente e parando diante da porta da cozinha e olhei para aquelas pessoas que aparentavam serem os meus pais. Pais de anos atrás, diferentes que eu tinha na memória, até mesmo das fotografias. Mas sabia que eram eles. Nem notaram a minha presença de tão quieto que eu me mantive. Mal respirava.
Olhei para a velha Frigidaire no canto esquerdo da parede coberta de barra-lisa ao fundo da cozinha. A parte inferior da geladeira era fechada para esconder o motor barulhento. Somente a parte superior servia de refrigerador e muito diferente das de hoje, aquela, a porta não tinha prateleiras para ovos, frascos ou garrafas de bebidas. O congelador era aberto e nele cabia apenas duas forminhas para fazermos o gelo. Sobre ela, vi alguns papéis e o pinguim de louça que eu gostava muito.
A mesa da cozinha de madeira clara estava com a toalha sobre ela. Do bule de café saia a fumaça, o mesmo saia da leiteira e da manteigueira de vidro via um resto de margarina. Parte de um filão de pão com uma fatia cortada, também vi. 
O guarda-louça de estilo igual ao da mesa e das cadeiras estava na mesma parede da geladeira, bem ao meu lado esquerdo. Uma das gavetas estava quase aberta e era que nela meu pai guardava os documentos e a chave de sua motocileta, Vincent.
Ele estava sentado de costas para mim e minha mãe em pé estava junto à pia de granito verde, próxima também ao fogão. Olhei para a parte inferior dele, todo de ferro esmaltado e vi o desenho estampado abaixo do forno que tanto admirava - um homenzinho carregando num carrinho, um bujão de gás da Ultragás. 
A porta do quintal dos fundos, bem à frente, estava com uma das folhas abertas e por ela vi que o sol brilhava naquela manhã, apesar do friozinho.
O Zilomag não parava de tocar. Uma ou outra notícia era anunciada e mais música do orgulho brasileiro era tocada, o fato do dia era mesmo a seleção canarinho bi campeã do mundo.
Não pode ser, deve ser um sonho, um pesadelo. Devo ter bebido muito ontem à noite. Só pode ser isso…  Eu pensava sem parar - atônito, confuso e com muito medo.

Dei dos passos para trás em silêncio e me virei para ir ao quarto da frente, o quarto dos meus pais. Vi a cama desarrumada. Os lençóis e o cobertor xadrez fino amontoados sobre ela. A penteadeira com os enfeites coloridos e alguns vidros de perfume barato sobre ela deixavam pouco espaço para a escova e o pente da dona da casa. 
O velho guarda-roupa de duas portas em madeira escura, separados por uma faixa lisa de madeira trabalhada no melhor estilo provençal, me fez lembrar também do lustra-móveis Shell que passávamos para mante-lo brilhante como novo. Os dois criados-mudos acompanhavam o estilo e portanto, o polimento manual nosso.
Uma grande caixa de papelão ao lado direito do guarda-roupa guardava as revistas e livros de rádio e de cinema que minha mãe colecionava. De tempo em tempo ela deixava a gente folhear as revistas e me recordo de ficar alucinado com as fotografias em preto e branco dos artistas e dos estúdios do cinema. Olhei para todo o ambiente e me desconcertei mais ainda.

Ainda quieto segui até o banheiro. Uma cortina de plástico com gansos e patos nadando em uma lagoa com os arbustos aquáticos enormes, estampados nela e que separava o que seria o boxe com o chuveiro que vivia dando choque da outra parte do reservado. O vaso sanitário com a tampa de madeira descascada, o armário semi aberto logo sobre a pequena pia. Vi quatro escovas de dentes dependuras na parte interna do armário - uma azul clarinha, uma rosa, uma verde e outra azul mais escura. Todas com os fios desalinhados e desgastados. A escova verde era a minha. A identifiquei de imediato.
A descarga funcionava puxando-se uma cordinha que vinha da caixa de amianto fixada logo acima do assento do vaso. Na ponta da cordinha estava o nozinho que prendia uma madeirinha que servia de sustentação para a “puxada” da descarga de água e que minha mãe havia pedido para eu fazer dias atrás.
Dias atrás, como assim? Eu tinha feito aquilo umas cinco décadas atrás e não dias atrás e naquele instante parecia mesmo que tinha feito ontem.

Um calor intenso percorreu o meu corpo, senti medo. Mais que isso, senti pânico da cabeça aos pés. Nada daquilo fazia sentido. Minhas lembranças haviam se materializado ou eu, por alguma razão viajei pelo tempo? 
Foi quando me dei conta que estava descalço. O chão gelado do cimento liso vermelho do banheiro contrastava com o calor que sentia pelo corpo.
Por instinto segui até a sapateira de madeira pintada de branco que ficava no corredor do banheiro e nela peguei meu chinelo de borracha. Aquele soltava as tiras e uma delas, a do pé direito, a tira ficou presa por um araminho que meu pai havia consertado ontem, antes do jogo do Brasil.
Ontem? Ontem eu estava em Piracaia em fevereiro de 2013 e não em São Paulo em junho de 1962.
Mesmo assim calcei os chinelos e decidi falar com eles, com os que, supostamente, seriam os meus pais, lá na cozinha. Embora eu com os 59 anos nas costas, com os cabelos grisalhos e cheio de histórias pra contar, nem de longe eles iriam me reconhecer como o filho envelhecido pelo tempo o qual ainda eles não alcançaram.
Enchi o peito de coragem, tentei me equilibrar e fui decidido. Mal coloquei os pés na cozinha ouvi a sonora ordem materna:
Vai fazer xixi, lavar o rosto e escovar os dentes e depois vem tomar café. Não é porque você não tem aula hoje que não vai estudar.
Dei meia volta e retornei ao banheiro como um filho resignado e cumpri item a item da severa ordem matriarcal.
De lá ainda ouvi: Tira o pijama e coloca a calça comprida que hoje está frio. Coloca uma blusa de lã também.
Enquanto me vestia ouvi o ronco da Vincent do meu pai e com ela o ouvi saindo para o trabalho. Meu pai nunca se interessou por futebol e muito menos perdeu um dia de serviço por causa do Brasil. Para ele, aquele 18 de junho onde todos comemorariam o bi campeonato, era um dia normal. Mais um dia para ganhar na vida.

Só sei que quando me dirigia novamente à cozinha, depois do ritual matinal cumprido, na tentativa de descobrir alguma coisa com minha mãe, um sono repentino e muito forte se abateu sobre mim. O sofá-cama à minha frente foi por demais convidativo e nele me deitei, sem me importar com a surra que poderia levar depois. Em pouquíssimos segundos adormeci. E dormi por horas, dormi até o dia clarear.  
Ao acordar o primeiro som que ouvi foi o do rádio ligado. Alguém falava alguma coisa com muito entusiasmo e eu não entendia direito o que diziam. Parece que os jogadores da seleção que estavam no Chile desembarcaram no Aeroporto de Congonhas a pouco e uma multidão em delírio absoluto os recebia. O locutor praticamente gritava sem parar: Minha gente, o escrete canarinho chegou e agora na condição de bi campeão do mundo. Brasil, Brasil, bi campeão mundial de futebol! Suécia em 58, Chile em 1962. Viva Jânio! Viva o Brasil! Viva a República brasileira!   
Vi minha mãe cruzando a sala, saindo do quarto em direção ao banheiro. Senti os pés do meu irmão resvalando aos meus e notei que ele ainda dormia e que estávamos no velho sofá-cama da sala de casa, um aos pés do outro. A luz por entre as cortinas avermelhadas e floridas que cobriam a janela, bem ao nosso lado, quebravam a escuridão.
Pensei: Oba! Não tenho aula hoje. Que bom, o Brasil ganhou a Copa e por isso não teremos aula. Mas que sonho doido que eu tive esta noite. Que bom, somos bi campeões do mundo. Será que seremos penta campeões um dia? Caramba, preciso me cuidar pra quando eu ficar velho não me tornar rabugento como aquele velho do sonho que insistia em dizer que eu era ele em 2013. Espero estar vivo até lá, mas enquanto isso, fico aqui em 1962. Mas alguma coisa me diz que tempos difíceis virão.Viva o Brasil! 
Imagem Google - Presidente Jânio Quadros
         Como a vida me sorria eu sorria o tempo todo a ela.

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