06/06/2013

Os Vivaldinos

Parece que o ganhador é sempre quem conta a maior mentira. Não é bem assim, mas parece. Ou pelo menos aquele que é mais veemente. Sendo eloquente transforma-se a mentira numa verdade aceitável. Com tanto petróleo o mundo se plastificou.

Normalmente ele acordava às seis, nesse dia acordou às sete e meia. Perdeu a hora e a oportunidade de emprego. A entrevista com Seu Jeremias Duran, marcada para às oito, era do outro lado da cidade. Dois ônibus, metrô e uma boa caminhada, não daria tempo.
Quem pagou o pato foi ela, a esposa, despertada aos solavancos. A coitada ouviu tudo e mais um pouco, com direito a dois sai da frente, sua estrupício e um, você só me fode mesmo.
Amarildo há muito aguardava o telefonema da Alcântara Indústria Química e no dia anterior, no final da tarde ele chegou anunciando o convite.
Soube que somente dois candidatos concorriam à vaga e a pontualidade valia pontos, dois pontos, disseram a ele.
Dois anos e meio de desemprego a falência bateu à porta dos Souza. Amarildo sentia-se o último da fila, deprimido, vivia reclamando da sorte pelos cantos da casa. 
Dirce retomou a costura e os biscates garantiam o arroz e o feijão. Os filhos em escola pública se adaptaram, os cursos de inglês e judô há muito ficaram pra trás. Os amigos sumiram. As contas agora eram pagas, quando pagas, com dois meses em atraso.
Amarildo, químico formado pela USP, depois de vinte e três anos, foi chutado para o escanteio. Alegação: redução de custos. Vai reclamar com o Papa, Amarildo.

Muito bem, o que fazer agora? Ligar para tentar mudar a entrevista para o dia seguinte ou hoje ainda, logo após o almoço? Inventando alguma desculpa esfarrapada, sei lá? Resolveu arriscar e arriscou.

O TELEFONEMA

tuuu… tuuu… tuuu…

__ Alcântara Química, bom dia!
__ É... bom dia.
Com voz embargada. Gostaria de falar com Seu Jeremias Duran. Aqui quem fala é…
__ Um segundo, por favor, estou transferindo.
Meire, a secretária atendeu.
__ Sala do Dr Jeremias Duran, diretor industrial, em que posso ajudá-lo?
__ É… bom dia, aqui quem fala é Amarildo Pereira de Souza, químico formado pela USP, lembra? Tenho uma entrevista com o Dr Jeremias agora às oito e meia…
__ Não, Seu Amarildo, o horário seria às oito, daqui a quinze minutos.
__ Sabe o que é? Tive um problema no caminho, um problema sério. Fui assaltado por uns moleques de rua, desses que roubam celulares, mochilas e me levaram tudo e ainda tomei umas pauladas na cabeça, está saindo muito sangue. Um carro do SAMU está me socorrendo neste exato momento. Falo pelo celular de uma desconhecida que assistiu o assalto… a senhora quer falar com ela pra…
__ Nossa! Mas o senhor está bem?
__ Sim, sim… estou bem, um pouco zomzo, mas está dando pra falar, suportei bem pela minha determinação, graças a Deus. É que preciso fazer o BO e depois voltar pra casa, tomar um banho, trocar de roupa, ela está toda manchada de sangue e gostaria de ver com ele ou com a senhora, não sei, se haveria possibilidade de adiarmos a entrevista, se possível para amanhã no mesmo horário. Estou muito interessado no emprego a ponto de ter recusado tantos outros… Seria possível?
__ Seu Amarildo, o senhor está com sorte, apesar de tudo. O outro candidato acabou de nos ligar dizendo que teve problemas pra chegar também. E curiosamente ele nos disse que sofreu um assalto, bem parecido com o que o senhor sofreu e transferimos as entrevistas para amanhã. Ia ligar para o senhor agora mesmo.
__ Puxa vida, é mesmo? Lamento por ele. Quanta violência, não é? Mas ele está bem?
__ Sim, disse que sim.
Pensou: filho da puta, devia ter morrido o lazarento.
__ Ah que bom! Bem, então fica marcado para amanhã às oito, oito e meia. Pode ser?
__ Não, Seu Amarildo, para amanhã, quinta feira, às 08 horas, pontualmente. Oito da manhã. O senhor compreendeu?
__ Sim, sim… Olha, muito obrigado, Dona… Dona… desculpe, qual é mesmo o nome da senhora ou senhorita?
__ Meire. Sou a secretária do Dr Jeremias Duran, o diretor industrial.
__ Ah tá, Dona Meire, amanhã às oito, sem falta. Até logo, então. Até amanhã, quero dizer… he he…
__ Bom dia.



A ENTREVISTA


No dia seguinte ambos chegaram pontualmente às oito. Nem se olharam, somente Dona Meire notou um certo abatimento e um curativo bem feito na cabeça do outro candidato. Amarildo, o químico desempregado, esqueceu-se de fazer o seu. O outro ficou com a vaga.

Quem pagou o pato novamente foi Dirce, a esposa costureira, pois não o lembrou de passar na farmácia para comprar algodão, mercúrio e um rolinho de esparadrapo.

__ É uma estrupício mesmo.



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