26/05/2013

O crime do Jardim Querosene

Mais um dia na periferia de uma cidade grande, super povoada, capital econômica de um país que fica distante, bem depois da Indonésia, muito longe daqui, diga-se de passagem.

O bar ainda estava aberto e olhe que já passava das onze. Seu Manoel normalmente baixa a porta do estabelecimento no máximo nove ou nove e meia, mas naquela noite, por descuido talvez e entretido no fechamento das contas, esqueceu-se da rotina.
O dia foi de boa féria e ficar marcando bobeira pra ladrão meter a mão, não era bom negócio e nem nunca foi.
Seu Manoel, Mané para os mais próximos, prático do fast food de periferia e antigo no bairro, sabia muito bem das consequências. Nem pensar em inventar moda. Pois!

Dois fregueses se apoiavam no balcão e pediram uma saidera rapidinha, foram servidos de contra-gosto pelo dono do boteco. Um outro tragava um cigarro mais ao canto, debruçado sobre a mesa de plástico amarela. A meia dose da branquinha no copo esperava para ser sorvida fazia mais de uma hora. A amargura deste era visível, compreensível por saberem todos que se tratava de um infeliz que fora traído pela mulher que lhe jurara eterno amor. O flagrante que foi dado, sem que ele reagisse, dois anos atrás, não lhe saía da cabeça.

Dona Maria, esposa de Seu Manoel ajeitava a cozinha que ficava nos fundos. Panelas guardadas, pia limpa e o fogão com a frigideira pronta para os salgadinhos da manhã seguinte. No chão engordurado duas baratas esmagadas ainda se mexiam.
Nas imediações era o único de portas abertas. O Evaristo do bar vizinho da frente que costumava ir até mais tarde, por luto em família, naquele dia não abriu. A morte do filho envolvido com o tráfico era comentada pelos fregueses da saidera em voz cautelosa.

Um rapaz com cerca de dezenove anos no máximo, vestindo bermudas, camiseta e chinelos, entrou subitamente e pediu um maço de cigarros, foi atendido com o Derby vermelho. Seu Manoel deu-lhe o troco. O rapaz pediu então uma pinga para arredondar a conta. Sem dirigir uma palavra ele o serviu com cara de quem não gostou do freguês de última hora.
O que poderia ser uma única talagada não foi. Uma bebericada e o descanso bruto do copo sobre o balcão de granito tilintou.

__ Estamos fechando. Ralhou Seu Manoel de cabeça baixa pra todos do recinto.
__ O Cleide, vanbora, pô! Vociferou para a esposa guardando as notas graudas envoltas em elásticos no bolso direito da calça.

Os quatro fregueses depois dessa se dispuseram apressadamente a pegar seus caminhos.  O Mané quando dizia que ia embora tinha que ser na hora. A saidera e os restos das pingas nos copos americanos desapareceram como num passe de mágica. Até o infeliz da mesa amarela se mexeu. Mão nos trocados, acerto de contas e…

Surge do nada uma linda morena de fechar o comércio. Alta, esbelta, de cabelos tingidos num loiro provocante, presos a uma maria-chiquinha verde, de um corpo realmente fora de série. Lindas coxas grossas, bronzeadas e bem torneadas, joelhos simétricos que chamavam a atenção pelos movimentos harmônicos e altamente sedutores. O decote arrojado do vestido ressaltavam o volume dos seios, deixando os mamões ainda mais esplêndidos. De salto alto, o traje justo à pele não cobria metade das pernas. A mulher era um verdadeiro espetáculo, um show de bola, um tesão, como concluíram os últimos fregueses do dia, até mesmo o infeliz do homem traído se deu a olhadela.
Alguns segundos de silêncio. Seu Manoel ergueu a cabeça, meio que de rabo de olho, franzindo o nariz, pôs-se a observá-la.

__ Boa noite, posso usar o banheiro?
__ Desculpe dona, estamos fechando, já se faz tarde.
__ Por favor, estou apertada. É rápido, preciso mesmo.
__ Já falei, estamos fechando. O banheiro está entupido, cheio de bosta até o talo, só amanhã vai ser consertado. Não dá.
__ Mas…
__ Cai fora, vá mijar em outro lugar, caralho. Aqui não é lugar de puta cagar e nem mijar.

Ela voltou-se constrangida, pelo menos se fez passar como tal. Deu saída a passos largos na direção da porta tardiamente aberta e desapareceu na escuridão sob olhares e risos discretos do público presente.

Não passou um minuto e meio quando duas outras pessoas camufladas com bonés e tocas pela cabeça, aparentando "de menores",  entraram com armas em punho, gritando: caiu… caiu… seus filho da puta!  Vários estampidos e gritos de pelo amor de Deus foram ouvidos pela vizinha que no exato momento assistia ao capítulo da novela onde o mocinho revelava toda a trama.

Disseram eles depois aos policiais que aos poucos foram chegando que pelos menos uns cinquenta pipocos foram disparados. Foi uma puta lambança que não parava, disse um menino com ar experiente.
Ninguém viu nada e muito menos sabiam de nada sobre a autoria dos crimes. Coisa comum no Jardim Querosene, lugar onde o urubu chupa cana e engole o bagaço.

No dia seguinte Evaristo abriu o bar mais cedo, cinco e pouco da manhã lá estava ele firme e forte. O luto de um dia era mais que o suficiente e nada melhor que o trabalho para distrair as desgraças da vida.
A multidão aguardava a chegada da polícia técnica, a perícia precisava ainda ser feita e alguns PMs se esforçavam para impedir a entrada de curiosos afoitos que insistiam em fotografar pelos celulares os corpos dilacerados em meio ao monte de sangue.
Duas emissoras de TV faziam entradas ao vivo nos seus telejornais matinais. Repórteres de rádio, internet e de tabloides impressos anunciavam mais uma cena de violência descabida na cidade.

Mais uma noite de violência. O crime está no comando, foi a manchete em um dos telejornais.

O dia prometia ser longo, agora, somente o bar do Evaristo estaria servindo as coxinhas, kibes, pedaços de torresmo, ovos cozidos, salsichas no palito, pinga e cerveja gelada num raio de dois quarteirões. Nenhuma concorrência e isso, de certo lhe traria muito trabalho e lucros significativos.

Bom para ele, bom para todos, ótimo para a economia do país emergente que fica distante, bem depois da Indonésia, longe daqui, graças a Deus.

Portanto, bom domingo de paz para nós.

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