19/11/2012

Navegando pelos mares de Navegantes

Baseado em fatos reais. 
Fazia pelo menos umas cinquenta horas que eu estava perdido, não tinha mais noção do tempo. Nadava sem direção definida guiado somente pela intuição e pelo desejo incontrolável de sobreviver. Dava braçadas lentas, pois as forças se esvaíam a cada segundo, elas minguanvam descaradamente e absolutamente fora do meu controle. A cada dez braçadas no máximo eu relaxava os músculos e descansava, apoiando-me num pedaço do que teria sido um desconfortável assento de classe econômica de um Fokker 100.
A noite agora estava limpa, devia ser umas sete ou oito horas, no máximo. Meu relógio a prova d'água mostrou-se ineficiente e se me livra-se daquele infortúnio, iria no dia seguinte reclamar ao vendedor. Somente a luz densa e prateada da lua cheia me fazia companhia. Ela refletia sua magnitude silenciosa nas águas relativamente calmas e orientavam o meu caminho num verdadeiro sendero luminoso e de certa forma, preenchia-me com algum conforto. Não sentia frio e nem calor, a explosão de adrenalina de a pouco equilibraram a temperatura do meu corpo, dando a ele a suave sensação de um banho em águas mornas em uma banheira de um hotel cinco estrelas. O céu, num azul profundo, mantinha centenas de milhares de milhões de pequenos pontos brilhantes em toda sua extensão. Não me lembrava de ter visto tantas estrelas juntas no firmamento em toda a minha vida e a luz, ao encontro da linha do horizonte, delineava um enorme contorno ligeiramente cintilante e curvo, dando-me a noção exata de quão longe me encontrava da terra firme. Meus pés imploravam apoio, assim como a minha alma.
Foi tudo tão de repetente que mal pude compreender o que havia acontecido. Sentia-me atordoado, provavelmente em decorrência da pancada que levei na cabeça. Ouvi um zunido e voei. Lembrei-me antes dos momentos finais, do sinal sonoro, desesperado, orientando-nos ao aperto dos cintos, mais ainda do que já estavam. O sinal de don't smoke também piscou. Lembrei-me da voz do comandante, nervosamente calma, dando instruções truncadas sobre posicionamentos de emergência aos quais deveríamos tomar. Vinham-me os gritos dos poucos passageiros, quinze no máximo, que faziam o mesmo voo que eu, naquele tubo claustrofóbico, metálico e revestido internamente em material sintético acinzentado. Me recordava de um grande estrondo. Um barulho infernal nunca ouvido antes. Tudo soava à mente sem uma ordem inteligível.
A aeronave que havia decolado do aeroporto de Navegantes em Santa Catarina com destino a São Paulo, naquele fatídico final de tarde de uma sexta feira da primeira semana de outubro de 1999, sob forte chuva e ventos ameaçadores, oriundos não sei de onde, após quinze minutos no ar, tomou rumo alternativo, fugindo das turbulências que provocavam quedas súbitas no voo e impediam o início dos serviços de bordo, para então seguir em direção ao mar, rastreando as nuvens negras. Nem o uisquinho pude saborear. A decisão foi anunciada pelo comandante Aelson ao lado de seu co-piloto, Danilo. A chefe das comissárias disse pelo microfone para que nos mantivéssemos calmos, pois o desvio de rota seria conveniente e tratava-se de um procedimento de rotina, e, naturalmente, visando nossa maior segurança e conforto. Era uma aeromoça simpática que ostentava um chachá mostrando bem o seu nome, Lucilene. As outras duas comissárias sentaram-se em suas poltronas de frente para os passageiros e elas aparentavam ser menos experientes em voos não normais. Prenderam aos cintos com ares de noviças. As percebi muito tensas. Todos ali estávamos.
Minutos depois um raio atingiu a calda do avião jogando-o para o lado fortemente. Uma  senhora gorda, sentada duas poltronas à minha frente pôs-se a rezar alto, bem alto. Entre um santo e outro chamado por ela, ouvia um caralho ou um puta que o pariu. Soubemos em seguida que o flap soltou-se da carcaça do avião desorientando totalmente o voo. A comunicação da cabine foi esquecida aberta, ouvíamos o desespero dos dois da linha de frente, inclusive os chingamentos mútuos. As duas turbinas laterais, grudadas ao corpo da nave, interromperam bruscamente o funcionamento. Sentimos os ruídos do mecanismo cessarem até chegar a zero. Havíamos saído das nuvens densas e das correntes de turbulências, o avião desviara a rota quase que a tempo de nos livrarmos dos sobes e desces abruptos que embrulhavam o estômago. Me recordo que vi de relance o céu limpo pelas janelinhas. Turbulenta mesmo estava a nossa situação dentro daquele avião que perdia mais e mais a altitude, dando solavancos terríveis que vinham do nada. Pendíamos para a esquerda e para a direita de um instante para o outro, voávamos completamente sem estabilidade e nuns dois ou três minutos minutos de muita aflição a queda foi certeira.  Mesmo com o esforço e a habilidade da tripulação que fazia de tudo para retomar o controle do voo, isso não foi possível. O encontro com as águas do Atlântico foi inevitável e com ele o grande e infindável impacto.
As poltronas se soltaram como se nunca tivessem estado presas ao piso e foram lançadas, parte delas, ao mar e parte à frente. O avião se partiu em dois e eu, antes acomodado no assento E-19, fui lançado para longe. Tudo aconteceu muito rapidamente, mas pareceram horas de intenso pavor.
Após o choque o silêncio invadiu a minha alma, não ouvia nada além do som das águas indo e vindo, insistentemente encobrindo os meus olhos, tentando me sufocar. Os gritos de horror desapareceram por completo, o desespero pela sobrevivência misturou-se a uma tranquilidade nunca sentida. A água salgada me ardia as entranhas, entupia a minha boca e o meu nariz. Queimava o meu esôfago. Lembro-me de sentir o enrugado nas pontas dos dedos. Me rendi quando pedi ajuda a Deus. Nem mesmo sob essa condição extrema me sentia à vontade para fazer isso, afinal só o estaria lembrando Dele, por medo, pensei que não seria justo. Meu orgulho me apinhava.
Meu Deus, será que ainda estou vivo ou é aqui o famoso umbral?
Me perguntava como tinha chegado ali, o que fazia naquele lugar tão ermo, tão distante de tudo, tão sozinho, lutando pela vida que me parecia querer me abandonar. Por instantes perguntei a mim mesmo porque o espírito que é eterno fica assim, todo inseguro dentro do corpo frágil. Se o espírito não morre, se está mesmo de passagem para evoluir, por que se prende tanto à vida de carne e osso?  Logo comigo que sempre evitei o mar pela solidão que ele me provoca. Divagava enquanto lutava pela vida.
Seguia com as braçadas compassadas aos intervalos e em direção ao que compreendia ser a correta. Os relâmpagos que via ao fundo poderiam estar sobre as montanhas do continente. Não tinha certeza, só seguia naquela direção. Me faltava ar nos pulmões e oxigênio ao cérebro. Tinha fome, medo, cansaço e muita vontade de dormir. Tinha sede, muita sede, mesmo eu sendo um micro cosmos ali na imensidão das águas. Sabia que não podia desistir, além de tudo, não pretendia virar comida de tubarão. Agarrei-me ao fragmento do assento cada vez mais apertado, como se estivesse abraçando a um amigo do peito, a um último fio de esperança. Os pés estavam mais frios agora. Onde foram parar os meus sapatos?
Pensei ter ouvido um ruído de motor de barco vindo de longe, bem de longe. Parei e dei atenção. Poderia ser a guarda costeira à procura de sobreviventes, de certo foram informados do acidente. Imaginei os controladores de voo de Florianópolis, Porto Alegre, Curitiba ou mesmo de São Paulo, dando conta de que em seus painéis de luzes verdes, o ícone do voo TP-7334 desaparecerá da tela em meio a tantos outros que ainda circulavam. E também certo, teria sido o pedido de socorro do comandante, momentos antes da queda. Teria ele alertado aos controladores a nossa posição. Criei coragem, busquei fôlego e gritei. Gritei pedindo ajuda com as poucas energias que ainda restavam.
O som do barco me parece real, estava mais próximo de mim. Um modelo de embarcação pequena vinha de fato ao meu encontro e dele raiou um foco de luz, possivelmente de um farolete de mão. Uma voz rouca, pouco compreensível eu ouvi - O senhor está vivo? Se não respondesse a óbvia pergunta, tendo ele notado os meus olhos esbugalhados de pavor, teria me passado por um morto vivo. Sem outra reação respondi rapidamente com um han han.
Na verdade não era a guarda costeira que me dava o atendimento, foi um barquinho pintado em verde escuro, já meio desbotado e com o nome de uma mulher em letras brancas e desordenadamente grandes, escritas pelo lado direito: Rosária.  O humilde  pescador lhe dava a tantas milhas náuticas do litoral no seu trabalhado noturno. Honesto, diga-se de passagem.
Não me lembro exatamente de como fui resgatado, lembro-me de sentir muita felicidade a ponto de adormecer segundos antes de ser pinçado para dentro da nau. 
Acordei com o atrito dos sacolejos provocados pelo trem de pouso do Fokker 100 sobre a pista do Aeroporto de Congonhas, uma hora e vinte e três minutos depois de ter decolado de Navegantes. Lucilene, a comissária chefe, com toda a gentileza profissional, despertou-me com toques de sua mão somados aos de sua voz suave, como se um anjo carinhosamente estivesse me despertando lá no céu. 
A noite estava limpa e estrelada em São Paulo e sem o menor sinal de chuva para as próximas horas. Contrastava com a do final de tarde em Navegantes. Lá o mundo caia ao chão enquanto nós subíamos de avião. O hábil comandante fez a geringonça decolar sob a forte tempestade tropical, com o mar nervoso à sua frente batendo nas rochas litorâneas em ondas gigantescas e com os ventos de um ciclone de escala invejável. Manteve-se durante o voo na rota prevista, atravessando corajosamente as intempéries metereológicas como um cavaleiro destemido enfrentando os dragões do mal. Eu aproveitei a condição imprevista, arrependido até o último fio de cabelo por ter colocado os pés naquele maldito avião, ainda com um piloto mais maluco do que eu, para tirar um bom cochilo. O dia tinha sido difícil lá em Navegantes, trabalhei muito. Não tinha mais nada a fazer depois que a porta se fechou, senão, sonhar. E eu sonhei. 

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