25/11/2012

A Revelação - Comédia em um único ato.

A cidade era pequena, não me lembro o nome dela e nem mesmo o ano do ocorrido, mas não é de muito. Só sei que aconteceu, pois quem me contou jurou de pés juntos tratar-se de fatos reais, bem verdadeiros, ela é muito amiga de uma das envolvidas na história.
As coisas não iam bem no casamento de Vilma e Antonio. Depois de nove anos de matrimônio, sem brigas, sem nada, tempos depois eles mal se falavam. Se toleravam apenas, trocavam poucas palavras entre si e menos ainda manifestavam qualquer tipo de afeição mútua, ao menos quando estavam sós. Se rendiam somente aos impulsos carnais, aqueles inevitáveis de tempo em tempo. Afinal a carne é fraca, como ponderou a amiga relatora.
Eles não compreendiam o que sentiam, se ambos foram feitos um para o outro, como aprenderam desde os tempos de criança, porque então, chegaram a este ponto? Aturdidos, questionavam-se. Sentiam saudades da época da infância e da adolescência. De quando felizes brincavam de médico e matavam aulas, sem que as mães soubessem, para se distraírem no esconde esconde no fundo de suas casas. Tudo era natural, muito gostoso.
Vilma durante o dia ocupava-se com os afazeres do lar e Antonio, prodigioso comerciante, mantinha a loja de calçados, a única da cidade, sempre pronta para as liquidações e últimos lançamentos.
Ela completou 27 anos em janeiro daquele ano e ele, 28 em fevereiro. Nos dias 31 e 1 de cada um daqueles meses. Não comemoram os aniversários, pois a avó dele, a quem ele dedicava muito apresso e que a tempos vinha cambaleando na doença, faleceu e foi enterrada, exatamente por esses dias.
À distância tratava-se de um casal normal levando a vida honestamente. Realmente pareciam ter nascidos um para o outro. Cresceram juntos, foram vizinhos de rua e de muro desde os primeiros engatinhamentos. Estudaram na mesma escola, tiveram as mesmas professoras. Fizeram a primeira comunhão no mesmo dia, na mesma igreja e com o mesmo padre, que também os  batizara anos antes. A mãe dela era madrinha dele e a dele, madrinha dela. Ambos eram órfãos de pai, portanto, num arranjo do padre, tiveram um mesmo padrinho na cerimônia e ao longo da vida, no afeto - seu Francisco, o viuvo, o dono da farmácia e pessoa muito respeitada na cidade.
Em nove anos de casamento não chegaram os filhos, um sequer e pelo jeito nunca os teriam. O que se comentava é que ela era infértil, oca, incapaz de gerar sua própria prole e ele teria que aceitar a situação como estabelecera a graça divina. Adoção em hipótese alguma. O padre não aconselhava, as mães não admitiam sangue diferente na família e nem mesmo crianças para serem adotadas na região existiam.
A vida seguia dia após dia, sem nada de novo para contar. Até mesmo as megeras, as fofoqueiras, as beatas, solteironas e recalcadas que em todo lugar existe, como também os velhos aposentados com suas barrigas enormes que servem de  apoio às mesas de dominó, lá, pouco tinham a observar.
O prefeito mal parava na cidade, dava mais conta de sua fazenda, a maior da região do que ao seu gabinete, reformado depois da eleição e da mesma forma a câmara de vereadores. As reuniões das quartas à noite mal aconteciam.
Aos domingos pela manhã a missa era regra e os passeios à tarde pela praça da matriz, ao som do estridente alto falante que tocava músicas da jovem guarda, era a principal diversão da população.
À noite as ruas ficavam vazias, todos se recolhiam, não se via viva alma perambulando por elas, nem cachorros e nem gatos, pois a semana chegaria logo mais e todos precisariam estar dispostos para ela com a graça de Deus Divino e de Nossa Senhora do Bom Parto. Pelas janelas viam-se as luzes azuladas das televisões ligadas. A música do Fantástico servia de trilha sonora nos finais dos domingos naquela pequena e pacata cidade que ainda não me recordo o nome.
Não teria outro motivo para eu estar aqui contando essa história não fosse o fato de numa quinta feira à noite, segundo a pessoa que me relatou, por volta das nove e quinze, mais ou menos, quando as pessoas preparavam-se ao recolhimento, três tiros se ouviram. Três estampidos agudos, longos e estridentes que provavelmente vieram de uma espingarda de calibre grosso, quebrando o silêncio e provocando um enorme susto na população.
Em pouco tempo uma das duas casas geminadas que ficavam na Rua Dr José Lourenço, dois quarteirões abaixo da Igreja, estava lotada de gente curiosa, dificultando o trabalho da polícia no local.
Lá moravam Vilma e Antonio e lá foram encontrados os corpos com as cabeças esbugalhadas, envoltas em grandes poças de sangue de dona Margarida, dona Maria de Lourdes e de seu Francisco, o farmacêutico conhecido como homem sério. Na ordem do relato, lá estavam: a mãe de Vilma, a mãe de Antonio e o pai dos dois.
O casal desapareceu sem deixar pistas e nunca mais eles foram vistos pelas cercanias. Soube-se pelo vizinho, um padeiro que morava bem em frente ao local do sinistro, que ele, Antonio, fugiu pela direção norte e ela, Vilma, em passos decididos, pegou o caminho oposto. Disse ainda que os viu numa despedida fraterna, num abraço apertado, com beijos acariciados pelos rostos e desejos de um a outro de boa sorte e de felicidades.
Sobre a mesa da cozinha foi encontrada uma carta escrita com letras nervosas de Antonio e assinada por ambos, revelando a descoberta fulgaz e a indignação que os acometera.
Mais abaixo, com as letrinhas de Vilma, leu-se um singelo: hipócritas.

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