03/12/2012

My Love for You

Depois de uma noite de sono profundo despertei com os latidos de um cachorro que me pareciam ser de porte pequeno. Não sei se eles vinham da rua ou do quintal, mas eram bastante nervosos, tal como eu fiquei. Me revirei na cama pois ainda estava com sono, só queria dormir. Me envolvi nas cobertas aconchegando a preguiça descomunal que me impedia de reagir. Não queria abrir os olhos, não queria fazer nada a não ser voltar ao sono.  
Ouvi outros ruídos e pareciam vir da cozinha. Senti o cheiro de café sendo coado e uma colher que batia no que seria um bule lotado. Adoçavam o café, pensei. O locutor falava alguma coisa pelo rádio, anunciava um tal de Creme de Arroz Colombo, a beleza para mulher. A voz dele com a música do creme me deixavam ainda mais irritado. Não sei o por quê, mas acho que deveria ser quase sete da manhã.

Quis lembrar qual dia da semana era aquele que amanhecia meio frio, torcendo para que fosse um sábado ou um domingo. Nada me vinha à cabeça a não ser que um dos pés estava sem a meia de lã.
Com esforço decidi sair da cama, antes que me chamassem, sentei-me à beira dela ainda com os olhos semi serrados. Procurei os chinelos por debaixo da cama com os pés, observando o quarto quase escuro mal podendo enxergar o que me cercava.  

Estranhei o pijama de flanela acinzentado com desenhos pequenos e esverdeados. Não me lembrava de vesti-lo na noite anterior e o reconheci como um que minha mãe havia feito quando eu era criança. Aromas, sons e toques nos remetem a fragmentos de viagem pelo tempo.
Com esforço me levantei já calçado com os chinelos de borracha. Abri a porta do quarto e me dei ao corredor que seguia até ao banheiro à minha direita.
O elástico do pijama facilitou o movimento diante do vaso sanitário. Instintivamente levantei o assento. Queria começar bem o dia, sem reclamações. Dois bocejos, algumas chacoalhadas e soltei o elástico. Me senti mais aliviado agora. 

Bem atrás de mim estava a pia branca com alguns rachados enegrecidos pelo tempo e a torneira cor de bronze com uma poça de água na sua base escorria. Lavei bem o rosto pra despertar. No armário de madeira pintado de branco estavam as quatro escovas de dentes. A verde com os fios mais definhados era a minha. A pasta Kolinos estava com a tampa aberta, pensei logo que haviam esquecido de fecha-la. Ainda lembrei que havia pedido que comprassem uma com listras vermelhas. Acho que era Signal. 

Decidi ir direto para a cozinha antes mesmo de tirar o pijama. O frio me incomodava e vi que o cachorro parou de latir. De certo o lazarento só queria mesmo é me acordar. Passei pela sala me guiando pelo hábito, desviei do sofá e da tv e segui o cheiro do café que enfestava a casa desde cedo. 

Alcancei a porta que dava acesso à cozinha, tropeçando aqui e ali e para a mulher de cabelos levemente aloirados, com cara de poucos amigos como de costume pelas manhãs e encostada à pia lavando alguma louça, cumprimentei com um som qualquer que seria traduzido como um bom dia e dela ouvi um direto - você está atrasado, tome logo o café com pão com manteiga e vá vestir o uniforme, rápido, vamos, pois já são dez para as sete. 

Sentei-me e não disse nada, me servi do café e cortei uma fatia do filão e nela passei a manteiga. Fiquei hipnotizado pelos desenhos da lata - era uma espécie de sol que radiava fachos pela embalagem e mais abaixo se lia - Rádium. 

Um, dois. Um, dois. Com regulador Xavier, vive melhor a mulher. Um dois... regulador Xavier... a voz grave do locutor arrastando os erres, enaltecendo o produto anunciado me chamava atenção. Pensei como era antiga essa propaganda. 

Olhei pelas paredes admirando a barra lisa que cobria a metade da altura das quatro delas. Me fascinavam. O resto da alvenaria era branca. O galo, um artesanato tosco de madeira estava fixado na mesma parede do vitrô, cujas cortinas de matéria plástica toda azulada, estampavam uns cisnes brancos entre arbustos da mesma cor. O galo e eles pareciam olhar sisudos para mim. Na geladeira de um branco amarelado, via-se a marca em destaque - Climax. 
O Rádio, um Voz de Ouro ABC tocava agora a música que ela mais gostava - My Love for You. 

À minha frente uma folhinha dependurada fora de alinhamento e com  as bordas amassadas. O cabeçalho  de papel mais grosso fazia propaganda da farmácia Marly. Olhei curioso para ela mastigando o último pedaço de pão.
Os números pretos dentro dos quadriculados que iam ordenadamente de um a trinta e um. Alguém circundou o primeiro dia do mês e o da semana, uma segunda feira. Mais ao centro, justapostos, assinalava o mês de agosto. E ao alto, logo abaixo da propaganda, em vermelho destacado, estava o ano: 1962. 

__ Mãe, por que está marcado na folhinha, 1962? 

Ela virou-se e respondeu: 

__ Toma logo esse café se não você vai chegar na escola somente em 1963. 

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