07/12/2012

Coisas do coração

… e quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração. E quem irá dizer que não existe…
Renato Russo

Quando completou 12 anos de casamento Estela concluiu ser uma mulher infeliz. Por mais que se esforçasse, em lapsos de descontração, a melancolia pesava-lhe a alma, alternando pensamentos mórbidos com desconexos que lhe traziam tonturas, amarguras, as quais deveria, esconder eternamente. A culpa tornou-se companheira nos dias e nas noites.

Não devia pensar assim, não era certo pensar assim, pois tinha uma vida segura e estável. Diferente de sua irmã que se casou com um boêmio e tem uma vida desregrada.

Dois filhos saudáveis, Renatinho e Ana Luiza tomavam-lhe a atenção. Um marido exemplar, o qual amava profundamente, daqueles que as mulheres sonham em ter sob guarda. Rui, um homem de 36 anos, honesto, trabalhador e totalmente dedicado aos filhos e a ela.

Moravam em casa própria, um sobrado de três cômodos, sala, cozinha e dois banheiros. Uma lavanderia equipada logo aos fundos onde próximo, Rui mandou construir uma churrasqueira de tijolinhos expostos e coberta. 

A casa foi financiada em vinte e cinco anos pelo banco onde ele faz carreira desde garoto, o primeiro e único emprego de Rui. Conseguiu um empréstimo ainda noivo de Estela. Noivado que durou quase três anos e que depois foi consagrado pelo casamento, desejado e condicionado pelas famílias e que contou com uma festa inesquecível. Para ela, Rui foi e provavelmente será o único homem de sua vida.

Porém, nos últimos tempos passou a questionar a vida que levava, a rotina avassaladora de dona de casa, sem emoção e sem desafios. Perguntava-se se era mesmo o que queria pra si. Não lhe saia da cabeça a possibilidade de mudar tudo, de alterar o rumo. Não se sentia satisfeita, embora, ao mundo, tinha que manter as aparências.

Rui nunca permitiu que a esposa trabalhasse fora. Segundo ele, as tarefas caseiras lhe ocupariam integralmente, a presença efetiva da mãe no acompanhamento do crescimento dos filhos eram fundamentais, além do que, preferia encontra-la bonita e perfumada quando chegasse em casa após o dia longo de trabalho. Ela não deveria se preocupar com nada, ele cuidaria do provento. 

Quando muito ele concordava com que ela participasse das atividades na igreja, nos preparativos de festas ou nos estudos evangélicos.

Ela olhava para a casa, via os filhos felizes correndo pelo quintal, a sala bem mobiliada com uma TV de 52 polegadas 3D em destaque na estante. Um jogo de sofá em couro legítimo com uma mesinha de centro em mármore abarrotada de enfeites. Os quartos, a cozinha, todos os ambientes em perfeita organização. Estela cumpria, resignada até então, o papel de nascida para o lar.

Como nada é completamente perfeito, ela engordara sete quilos nos últimos dois anos e outros treze, desde quando casou-se. Os quarenta e seis quilos do corpo tenro de um metro e sessenta e cinco, ficaram para trás. Apesar das constantes dietas a nova dimensão tornava-a mais esférica. Um olhar poético veria Estela como uma dama da corte medieval.

Adquiriu síndrome do pânico sem dar conta disso, não sabia a razão, mas, mal conseguia sair de casa de tanto medo que sentia. Via os amigos e os familiares somente quando estes visitavam a família aos finais de semana. 
O espelho no banheiro tornou-se o seu maior martírio, um inimigo atroz, voraz e detestavelmente revelador, que nas manhãs escancaravam as primeiras rugas da face. Além de delatar um ou outro fio de cabelo branco que teimavam em aparecer do nada, entre tantos outros fios castanhos escuros, lisos que lhe caiam pelos ombros. Os olhos pequenos de um azul claro combinavam com a pele morena de menina. Estela ainda era muito bonita e na semana passada completara 29 anos.
Os dias se seguiam sem mudanças, pelo contrário, cada dia mais se parecia com o anterior. Sentia-se como num filme despertando sempre para o mesmo dia. 
Dez para às sete a buzina da Van de transporte escolar chamava as crianças no portão. Sete e quinze o marido saía para o trabalho dando-lhe um beijo na testa, acariciando os seus cabelos, dizendo que a amava muito e pedindo para que ela cuidasse do castelo de amor onde viviam. 
Às oito e meia, depois dos telejornais matinais, iniciava as prendas diárias, tudo exatamente igual, dia após dia. Mais igual não poderia ser.
Numa determinada manhã algo diferente aconteceu quebrando então a rotina. Um caminhão baú de mudanças estacionou em frente a casa vizinha, o sobrado geminado do lado esquerdo. Dele desceram carregadores uniformizados e barulhentos, falando alto em um sotaque de dificultava a compreensão. Estela procurou saber o que estava acontecendo lá fora e de avental sobre o vestido estampado e uma vassoura na mão iniciou a varredura  da calçada observando discretamente o movimento.
Ela viu que além do caminhão de mudança, um automóvel de último tipo estacionou logo atrás e dele desembarcou um homem moreno, magro, muito elegante, usando uma barba densa e bem aparada. Este a viu de relance e gentilmente a cumprimentou com um sorriso, inclinando a cabeça para ela num gesto mais elegante ainda e do bolso sacou um molho de chaves e entre elas escolheu a que abriria o portão. Depois disso o elegante senhor, virou-se e sorriu novamente. Estela, constrangida, não correspondeu a nenhum dos acenos. 
Ela ficou ali por pouco tempo simulando algum trabalho. Outras vizinhas fizeram o mesmo, cumprimentaram-se umas as outras com discrição,  buscando na reviravolta matinal alguma outra informação. A curiosidade desperta sentimentos não bem definidos na gente.
De fato a rotina fora quebrada naquela manhã e Estela nem poderia imaginar o quanto para ela o mundo se transformaria.
A carga foi entregue em pouco mais de três horas e com muito falatório dos carregadores. Nesse tempo, entre idas e vindas para dentro de casa, Estela veio à frente pelo menos umas cinco vezes e a cada vez mostrava uma desculpa diferente a quem a percebesse. Saco de lixo na lixeira da calçada, certificar-se que a trava do portão estava bem travada, limpar as janelas empoeiradas, outra varrida no corredor lateral e a última sem nada a declarar, simplesmente e furtivamente, escondendo-se atrás dos arbustos.
Entre as grandes roseiras de rosas vermelhas e brancas plantadas por Rui para enfeitar o jardim ela se camuflou. Sentia escondendo-se de si mesma, mais do que dos outros da rua e dali, ora ou outra, notava o homem elegante orientando os trabalhadores e de quando em quando buscando alguma coisa no carro e no retorno, invariavelmente dirigia o olhar, nitidamente curioso em direção a sua casa, fazendo com que ela se escondesse mais ainda. Fixou na memória o sorriso juvenil do novo vizinho. Seria um novo vizinho mesmo? Seu coração bateu mais forte a partir deste dia.
As mulheres são muito atentas aos detalhes. Aos olhos de Estela o homem vestia-se encantadoramente como um príncipe em dia de folga - calça jeans tradicional, um pouco justa ao corpo. Camisa de mangas compridas, dobradas pelos braços, levemente xadrez e em tom azul. Somente um botão próximo a gola estava aberto e sobre ela um colete de tecido fino, cintilante e preto. Calçava um par de tênis branco com detalhes em azul nas laterais. Aparentava não mais que quarenta anos e devia ter um metro e oitenta e cinco de altura. O vento em sua direção contribuiu para a leitura, trazendo fragrância de um perfume leve de madeira.
Os cabelos negros longos, pouco ondulados brilhavam e de certo recebiam cuidados constantes. Os braços com músculos acentuados cercavam-lhe o peito largo e balançavam numa harmonia sem igual. Pernas longas de coxas torneadas davam aos seus passos um charme de modelo italiano. 
Isso tudo deixou Estela instigada. Quem seria o homem de sorriso sutil que mostrava uma dentição naturalmente alinhada e absolutamente alva. Para ela o conjunto era perfeito. A voz dele, num grave imperativo, mas ao mesmo tempo gentil, caiam como música aos ouvidos. Tudo tão acalentador como as rosas vermelhas que lhe acariciavam a pele naquele instante.
Num suspiro resignado ela voltou-se aos afazeres, assim recolhendo do chão algumas folhas secas que caíram das roseiras, se dando conta que um espinho dos graúdos encravou-se à palma da mão.
Três dias se passaram e Estela não conseguia esquecer a eletrizante manhã. O sorriso que o homem elegante dirigiu a ela por duas vezes, não lhe saia da cabeça. Nessas manhãs, nem bem o marido saía para o trabalho, estava ela cuidando da frente da casa, atenta e dissimulada, com o olhar periférico voltado ao muro vizinho. Ninguém aparecia.
Os dias se tornaram estranhamente intensos e cheios de expectativas. Estela aprumou-se, passou a vestir-se mais adequadamente. Prendeu os cabelos num laço delicado expondo o rosto de traços suaves. As pequenas rugas desapareceram atrás da maquiagem eficiente.
O pânico foi superado pela ansiedade curiosa que libertou Estela para as  constantes idas à farmácia, ao supermercado e até para prosas breves e descabidas com a vizinhança. Tudo agora era motivo para sair e quem sabe encontrar o homem que parecia um anjo vindo do céu. 
Sonhos de verdade ela os tinha e que a faziam dizer coisas sem nexo  acordando Rui pelas madrugadas.
Um mês depois ainda se mantinha atenta. Os sonhos das madrugadas continuaram e cada vez mais intensos. Com eles, Estela se libertava da moralidade pela qual havia sido criada. Através deles reconheceu que escondera de si mesma por toda a vida, uma mulher capaz de ultrapassar qualquer barreira para ser livre. Rui, embora de sono pesado, ouvia os gemidos, os sussurros e palavras descompassadas e via no rosto de Estela  dormindo, sorrisos que jamais vira nela. Nesse tempo, nunca o jardim fora tão bem cuidado e nem as janelas ficaram tão limpas. Comentava Rui aos amigos e familiares nos churrascos de domingo.
Foi numa segunda feira, por volta das nove horas que a campainha tocou. Estela nesse dia sentia-se desconfortável. Não tivera nenhum sonho à noite e isso não lhe parecia um bom sinal. O sonho acabou mesmo? Pensou.
Seguiu até a porta da cozinha com um prato sujo na mão direita e uma bucha ensopada de detergente na outra. Esticou o pescoço para ver quem chamava e pelo corredor lateral olhou em direção ao portão.
O susto fez com que escapasse o que ela tinha nas mãos. Fixou o olhar descontrolado ao homem do portão. Muda e de olhos arregalados por uma eternidade. Assim pareceu a ele.
__ Bom dia. Meu nome é Antonio Marcos, sou o novo vizinho. Gostaria de falar com a senhora. Poderia me atender, por favor?
Estela não só o reconheceu como constatou ser de carne e osso a figura que habitava os seus sonhos. Ele em pessoa pedia um favor a ela.
Segundos depois, passado o primeiro susto, ateve-se ao que não gostara: a parte em que ele disse - falar com a senhora. O pensamento é a coisa mais rápida e desobediente que existe. Ele chega numa velocidade impressionante, ainda mais quando não o queremos.
Desfez o nó do avental e o jogou ao chão juntado-o aos cacos do prato que se espatifara e a bucha sem que percebesse. Ajeitou os cabelos e o laço que os prendiam olhando-se no reflexo da cristaleira. Respirou fundo, pôs a mão ao peito e sentiu o coração disparado. As pernas tremiam e um suor frio percorreu todo o corpo.
Contou até três e disse a si mesma - Coragem Estela, coragem. 
Endireitou-se, ergueu o queixo e foi ao encontro.
__ Pois não, quem é?
__ Ah! Senhora, bom dia! A voz imperativa e suave do homem ela admirou novamente. Mas.
Pronto, lá vem ele com o senhora de novo. Pensou dirigindo-se ao portão, ajeitando o vestido ao corpo.
No caminho, o homem ficou observando atento os passos daquela linda mulher com jeitinho de menina moça. Não se conteve e abriu um sorriso deixando Estela ainda mais atordoada.
__ Bom dia, pois não! Com o coração pulsando forte e escondendo o calafrio que remoía suas entranhas.
__ Bom dia, sou Antonio Marcos, vizinho ai do lado. Estendendo a mão.
Outro dia trouxe minhas coisas para cá e ao sair acabei batendo a porta deixando a chave lá dentro. Sorriu passando-se por tímido.
Ela sentiu a mão macia e forte do homem que em seus sonhos fazia o personagem principal e ele teve a oportunidade de sentir a delicadeza da mão pequena de Estela, acariciando-a discretamente com o polegar.
O perfume ela reconheceu de pronto.
__ Ah sim, acho que ouvi alguma coisa dias atrás. Um caminhão, não é?  Nem reparei direito. Mas o que o senhor deseja?
__ Então. Será que eu poderia pular o muro dos fundos? Na cozinha que fica na parte de trás tem um vitrô e ele está sem a trava, assim eu conseguiria entrar.
__ Bem, acho que sim, mas o muro é meio alto para pular.
Estela não acreditava no que estava acontecendo. O homem dos seus sonhos, o moreno alto, todo elegante, ali, falando com ela, pedindo permissão para invadir sua casa. Logo agora que o marido e os filhos não estavam. O que vão pensar? Olhou para os lados e não viu ninguém, nenhuma vizinha na rua naquele momento.
__ Bem, por favor, espere um pouco que eu vou buscar a chave. E voltou-se ao corredor.
O homem sentiu-se presenteado ao ver a mulher caminhando à sua frente e em seguida voltando para ele com uma chave na mão.
Ela o acompanhou até os fundos e apontou o local. Num salto majestoso ele alcançou o muro e sentado sobre ele o homem disse:
__ Não sei como agradecer sua confiança e préstimos, se me permitir não gostaria mais de chama-la de senhora. A achei muito jovem para tanto. Posso saber seu nome?
Falando daquele jeito altivo, sentado sobre o muro deixou Estela abobalhada.  O calafrio passara e foi substituído pela fervura. O coração voltou ao ritmo normal e os olhos por uma fração de segundo se fecharam. Buscou guardar da memória a cena. Para ela, o príncipe encantado, montando um lindo cavalo branco, veio salvá-la e viveriam felizes por toda a eternidade.
__ Estela. Respondeu timidamente, pendendo a cabeça levemente para a esquerda.
__ Prazer Estela, lindo nome. Significa, Estrela. Posso te chamar assim? Você é reluzente como elas.
__ Prazer, Seu Antonio Marcos. Pode sim, esse é meu nome. 
__ Marcos, pra você, Estrela.
Ela ouviu o salto do homem pelo outro lado do muro e logo em seguida, ouviu o vitrô se abrindo. O seu príncipe desaparecera na floresta. Só que agora ela saberia onde encontra-lo.
Nos meses seguintes Rui estranhou a mudança de comportamento da esposa. Ela ficou alegre, solícita e brincava mais com os filhos. Recebia feliz os amigos e os parentes nos churrascos dos domingos. Nem de longe parecia a Estela de antes, comentavam todos. 
Ela perdeu o medo e a apatia. Saia frequentemente e sempre se apresentava disponível a quem pudesse ajudar.
Na intimidade, Rui notou a esposa mais amorosa, envolvente, caliente como nunca visto antes. Só não compreendia o hábito recente em manter-se de os olhos cerrados enquanto estavam nus na cama, nem tão pouco, o por quê de não mais ouvir dela a pronuncia exata do seu nome durante o coito.
Perdeu os quilos adquiridos ao longo dos anos. Passou a frequentar academia. Trocou o guarda roupa, vestindo-se agora de forma discretamente sensual. 
Os cabelos de Estela ficaram soltos, leves e brilhantes. Ele adorava vê-los ao vento. A esposa aparentou ser dez anos mais jovem.
Rui sentia orgulho da família, dos filhos e da mulher amada. Se dedicou intensamente ao trabalho, pouco ficava em casa, pois começou a viajar regularmente, coisa que não fazia antes por receio de deixar a esposa doente da cabeça muito tempo sozinha sem sua proteção. Pôde agora ir as auditorias pelas agências bancárias espalhadas por todo o país, aumentando significativamente o seu soldo e ganhando cada vez mais espaço na diretoria. Seu objetivo desde quando entrou no Banco do Comércio Rural.
E a cada retorno, obrigatoriamente precedido, por exigência dela, de um telefonema no dia anterior, a esposa e os filhos o recebiam de braços abertos no portão e um jantar digno de um rei, ela preparava ao marido. Cumpria agora feliz o papel de dona de casa que nunca quis.
E por anos os churrascos continuaram aos domingos. Agora com a presença de um participante novo, no exclusivo rol de amigos do dono da casa, o vizinho, Antonio Marcos. Marcão para os mais chegados e Ma a quem gozasse de e na sua intimidade.
Hoje, Estela é gerente de produção na empresa de Antonio Marcos - AM Importações. Rui mudou muito também, compreendeu finalmente que não teria o amor da amada para sempre caso não concordasse com as atuais exigências. Modernas demais para seu gosto, mas irremediavelmente aceitáveis.
Renatinho e Ana Luiza cresceram e já estão na faculdade. Ele faz o curso de mecatrônica na Federal e ela, depois dos problemas com as drogas, optou pela psicóloga, assim tentando compreender melhor a mente humana.
Rui e Marcão se tornaram bons vizinhos e se divertem contando piadas nos churrascos de domingo e Estela, não aparentando a idade, agora vive feliz próxima aos dois.

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