16/09/2011

Manhãs das Sextas Feiras

As manhãs das sextas feiras são sempre legais.

Mesmo aquelas em que acordamos ouvindo através da janela as fortes chuvas ou as garoinhas que umedecerão as solas dos sapatos pelo dia todo.

Mesmo quando das broncas matinais do cônjuge (a minha é bastante calma, nunca faz isso, desde que eu não pergunte nada a ela na primeira hora, logo depois do bom dia).

Se pisamos no coco do cachorro no quintal ou se nos damos conta que ele estragou alguma coisa, uma roupa sua que você gosta muito, esquecida no varal.
Se tropeçamos logo ao sair da cama levando o dedo do pé ao encontro súbito à quina do móvel mal percebido e que não deveria estar ali, provocando uma dor que mereceria o maior palavrão do mundo.

Se durante a madrugada enquanto estávamos em sono profundo, faltou energia e o relógio não marca a hora certa e você tem um compromisso o qual não pode se atrasar de jeito nenhum e fica de pronto sem saber se está atrasado ou não - será que ainda  existem relógios analógicos que não dependam de energia?

Nada nos aborrece nessas manhãs.
Nem mesmo a lembrança, a primeira do dia, quando a memória te leva ao dia anterior e você se lembra que seu chefe, mais uma vez não reconheceu o seu empenho e parabenizou o outro "colega" por uma ideia roubada de você - é raro isso acontecer com a gente, muito raro.
Quando um amigo ou amiga não te procura mais achando que você não correspondeu à sua lealdade. Que bateram no seu carro, um amassadinho de nada, um risco na pintura, mas que te deixou P da vida.

Ah!  Manhãs de sextas! São calmas, alegres, agradáveis. Tudo na mais perfeita harmonia.
Que trânsito intenso, nada! Aproveito para ver o que nunca reparei no caminho. Que cidade linda essa a minha! Até que são engraçadas e musicais as buzinas dos carros mais apressados de motoristas que, provavelmente estarão com o final de semana comprometidos.


Quem não adora as manhãs de sextas feiras?

Bom dia!  Bom dia.




14/09/2011

Élvio, o ET de Juracy - II


32 anos, antes.
Quando os primeiros raios de sol despontaram pelo horizonte da pequena e quase pacata, Juracy, ouviram-se gritos ensurdecedores, alucinados, vindos da casa contígua à Igreja da Matriz.

II
__ Padre Romério morreu! Mataram o padre! Ajudem, pelo amor de Deus!  Minha Santa Misericórdia, o que fizeram com ele?
Gritava freneticamente, Dona Esperança, a beata de 67 anos, de corpo franzino, viuva há 34 e sem filhos, que todas as manhãs dirigia-se aos fundos da igreja para o preparo do desjejum do padre Romério que gostava de frutas frescas bem lavadas, pão de milho com manteiga de leite de cabra, um ou dois pedaços de bolo de fubá, finalizando a ceia com um café bem forte e sem açucar, mas, que apesar da boa alimentação matinal e outras tantas pelo dia, sofria pelo mal funcionamento dos intestinos que lhe prendiam as entranhas, dificultando a saída regular dos dejetos orgânicos produzidos pela farta alimentação, por dias seguidos e, que em consequência, a inevitável flatulência, ruidosa e mal cheirosa era sentida e ouvida até mesmo durante a missa dominical e por isso ganhou, às escondidas, o carinhoso apelido de Padre Vento que rapidamente corrigidos quando o fadado padre voltava-se ao interlocutor - Padre Bento, padre, o senhor não ouviu direito.
Dona Esperança em prantos gritava sem parar quando encontrou o corpo do querido padre em meio ao sangue abundante que escorria pela cama de lençóis antes de brancura sem igual, fresco em algumas partes e ressecados em outras. Se espalhava pelo quarto de seis metros quadrados e paredes num bege enegrecido pelo tempo, com uma única janela que ficava do lado esquerdo da porta frontal, entre aberta e se contrapondo à parede que sustentava o crucifixo ligeiramente inclinado, imediatamente acima da cama estreita em cuja lateral direita permanecia um funcional  criado-mudo e nele apoiado uma Bíblia de capa vermelha e com as páginas abertas respingadas de sangue. Quarto que serviu de recolhimento e repouso por muitos anos ao mentor da pequena e quase pacata, Juracy. 
Obra de Salvador Dali
A cabeça separada a meio metro do corpo, caída ao chão, com os olhos que foram um dia esverdeados e inquisidores, vertiam lágrimas e ambos arregalados, apavorados, dirigiam-se com horror a quem os vissem, não importando o ponto de vista do espectador incrédulo. As sobrancelhas grisalhas, compridas e bastante grossas enalteciam o semblante tétrico do morto.
Eles estampavam desespero e davam à mórbida cena, a perfeita percepção de sofrimento a quem fora decapitado por golpes de um facão enferrujado esquecido em pé ao canto, apoiado à parede.


Padre Romério tinha sido assinado de forma brutal, no silêncio da noite, aparentemente sem uma causa, uma razão óbvia. 
Nada subtraído de seus pertences que se encontravam bem arrumados no guarda-roupa que ficava ao lado esquerdo da cama e nem se imaginava quem poderia guardar tamanho rancor ou qualquer tipo de mágoa a ponto de cometer a violência na proporção apresentada. De certo, obra de um raivoso lunático, não católico. Até hoje o autor não foi identificado.. 
Em minutos as pessoas se amontoaram diante e dentro da pequena casa. Incrédulas, curiosas, bestificadas. 
Algumas desmaiavam, outras em total desespero jogavam-se ao chão proferindo palavras incompreensíveis. Pessoas correndo de um lado para outro desorientadas. Uma gritaria generalizada.

O prefeito, Seu Eurípedes da Mata, homem sério e respeitado, calvo e de bigode fino, ex professor da Escola Municipal Henrique de Miranda, que a pouco deixara o mestrado para enveredar-se à vida pública, atendendo aos insistentes apelos de praticamente toda a comunidade (insistentes?). De pijama listrado branco e azul - mudo, sem saber o que pensar, olhava aquilo tudo e limitava-se a pedir de tempo em tempo calma aos mais desesperados. 
Acompanhado da primeira dama, Dona Dorinha, sua esposa, que vestida às pressas uma espécie de sobre-tudo de seda sintética, clara e quase transparente, deixava a gordura em excesso balançar desordenadamente pelo corpo como num efeito de câmera lenta, saltitando com dificuldade e erguendo as mãos aos céus clamando por respostas ao Todo Poderoso. Os chinelos de pelos de carneiro lhe protegiam os pés da friagem que infringiam fortes dores, dado o reumatismo adquirido há muitos anos e com os cabelos desalinhados pela noite bem dormida e despertada pelos gritos vindos do além.
Seu Luis, o dono da loja de móveis popular - Luis Móveis,  jamais perderá qualquer oportunidade de se distrair com a mazela alheia - um fofoqueiro de plantão. A esposa, dona Araci, a replicadora das versões do marido, os filhos, sete ao total e sogra, dona Zuzú, acomodada em sua cadeira de rodas.
Dona Marieta, a enfermeira que acabará de sair do plantão na Santa Casa, embrenhava-se por entre as pessoas para o acesso ao local do crime, guiada pelo Delegado, doutor Mario de Assis e dois policiais.
__ Não mexam em nada, não alterem a cena do crime! doutor Mario repetia.


As irmãs, Jurema, Cotinha, Maria do Rosário e Rosalina, as quatro beatas, bisnetas  do Coronel Porfírio, que foi casado com a filha mais velha do fundador da cidade - petrificadas,  emudecidas, vestiam camisolões brancos, em pé, na calçada diante àquela balbúrdia e falatórios, como quatro estúpidas estatuetas, daquelas que encontramos em feiras de artesanatos.
Gente se aproximando de todos os cantos - homens, mulheres, velhos e crianças, conjecturando explicações de toda natureza.
Até mesmo o doutor Solano Pinto estava lá. Raramente visto em público, o homem mais rico que conheceram os da pequena e quase pacata Juracy. Fazendeiro, plantador de algodão, feijão e milho, importador e exportador de bugigangas e praticamente dono de tudo na cidade, inclusive da rádio AM - Nova Juracy  e pra quem todos rendiam o bom dia, boa tarde e boa noite com servidão. Observava em postura altiva, não escondendo a raiva por algo ter acontecido sob suas barbas sem o prévia autorização. (Teria mesmo?)
Com ele dona Maria Emília, a esposa prendada, bonita e recatada, vinda de terras estrangeiras ainda jovem para casar-se e procriar. Respeitada pela vida regrada e dedicada exclusivamente à família e à Deus, a quem temia fervorosamente. Acompanhados estavam pelas jovens filhas - Edilalva de 17 anos e Doralisa, a mais nova de 15 anos, um tanto quanto rebelde e secretamente admirada pela evidente precocidade pelos moços e marmanjos da região - uma menina que em tão tenra idade despontava na formação de uma atraente mulher.
O pai previa seus destinos à vida num convento. Carinhosamente chamava-a de pequena madre Doralisa. Lisa, pela mãe, nos momentos descontraídos em família. Dona Lisa, respeitosamente, pelos menos próximos.
O dia se prolongou aos prantos. Os dias se prolongaram tristes e alterados. 
No cemitério, um monumento foi construído em pouquíssimos dias,  o maior e mais bonito que alguém pudesse supor, evidente que por ordens do doutor Solano Pinto, mantenedor da igreja, com lei criada e aprovada pela Câmara Municipal, sancionado de pronto, mesmo sem leitura pelo Poder Executivo, com a outorga do senhor Prefeito, Eurípedes da Mata. 
A catedral construída em mármore branco que de longe se avistava pelos quase 30 metros de altura, muito além dos muros do cemitério que ficava um pouco distante do centro urbano.  Adornada por lindos vasos cravejados de pedras brilhantes, guardando flores típicas da região que eram trocadas duas vezes ao dia - também por decreto municipal. As estatuetas de figuras angelicais de rostos parecidos aos das pessoas expressivas da história de Juracy - história passada e recente, em bronze polido, dispunham-se simetricamente nas bordas do monumento e no topo deste a esfinge de 12 metros, imponente do Padre Romério, agora Santo por decreto municipal. Olhar distante e sereno, mão direita erguida de forma segura e decidida e com o dedo indicador que apontava o caminho ao norte.


Na lápide de dois por um metro, toda em ouro, lia-se 

“Sua Generosidade, Padre Romério, a eterna Luz de Juracy”

Por muito tempo na cidade não se falou de outra coisa.
Ao completar cinco meses sem missas, sem desjejuns, sem ventos mal cheirosos e muita fornicação, numa tarde ensolarada as pessoas pararam quando perceberam a aproximação de um homem estranho que aparentava uns trinta e poucos anos. 
Trajava uma batina mal passada e pedalava uma bicicleta de aro 28 preta.
Seguiu firme em direção ao palacete do lado leste da cidade que servia de residência dos Pinto. No local se encontrava o prefeito, Eurípides e algumas autoridades e vereadores aliados.
__ Buona Sera!   B o a   T a r d e !   Ouviu-se a voz pelo portão de ferro.
Com um sorriso cativante, olhar penetrante e sotaque de um imigrante possivelmente do sul da Itália, o homem de corpo esbelto, metro e noventa e cinco, de voz postada e olhar penetrante,  prosseguiu sua apresentação aos ilustres que o bem receberam.


__ Mio nome é Gianne Di Pecchia, il patre substituto di Santi, Romieri - R o m é r i o, come a cá sono - c o n h e c i d o!  Caprichou no português meio que soletrando e no italiano nunca ouvido na região.
No domingo que se seguiu, Padre Gian, rezou a primeira missa na Igreja da Matriz. Às 10 horas da manhã de um domingo bastante quente e de céu azul profundo.
A igreja que andara vazia por meses, estava agora lotada de crentes, até mesmo pelos lados externos. Todos queriam conhecer o novo padre, o novo mentor.

Seja Bem Vindo, padre Gian!
Nos primeiros bancos do salão, isolados por uma faixa plástica amarela e preta, se posicionaram as autoridades para assistir a primeira missa. 
Vereadores com suas famílias; representantes da Liga da Moral e Bons Costumes; o prefeito, senhor, Eurípides da Mata com a esposa, dona Dorinha, esbaforida e calorenta; artistas do rádio, imprensa e convidados. 
Em destaque e cercados por dois enormes seguranças, estavam o Doutor Solano, exibindo o dominical terno branco, bem passado que lhe impunha notoriedade, sua linda e formosa esposa, dona Maria Emília e, claro, as filhas, Edilalva e Doralisa, Lisa. Esta, que nunca tinha demonstrado tendências à religiosidade, encantada ficou com a estranha, simpática, carismática e forte figura que conduzia o rito eclesiástico no altar, Padre Gian. Pareceu-lhe naquele momento, um santo.
A vida retomou na pequena e pacata, Juracy. 
… continua





09/09/2011

Élvio, o ET de Juracy.


Élvio, um homem de mídia - um publicitário. Assim ele queria ser visto na sua cidade, a pequena e quase pacata, Juracy, distante em algum ponto no interior do Brasil.


I
Exceto aos domingos, cujas manhãs, desde a infância foram reservadas às obrigações religiosas - missa na Igreja no Largo da Matriz, rezadas pelo Padre, Gian Di Pecchia, um italiano alto e forte, radicado na cidade há cerca de 30 anos e confessor da família, Élvio saía para o trabalho às dez em ponto. Com chuva ou com sol cumpria o ritual de forma rigorosamente disciplinada. 
Tinha fama de honesto, de generoso e de trabalhador. Muito embora, comentava-se ao pé do ouvido sobre seu comportamento, um tanto quanto estranho. Pelo jeito calado de ser, mais para observador e com piadas soltas basicamente do nada e sem muito sentido, desde cedo renderam-lhe o apelido de ET. Foi um menino daqueles que até hoje são ridicularizados nas escolas e fora delas.
Raras as vezes em que não estava trabalhando. Se alguém tivesse contado os dias em que não foi visto circulando pelas ruas de Juracy, nos seus vinte e nove anos de idade e quase onze de profissão, a soma não passaria de cinco. Contaram. 
Foram os dias em que esteve com a que foi considerada, a febre mais intensa que um ser humano poderia suportar, impensável à medicina moderna - 45 graus, da qual nunca souberam da origem e nem como, do nada, ela partira. E, nem tão pouco, compreendera-se como teria sobrevivido aquele jovem de estatura alta e ligeiramente magro, de pele morena marcada pelo sol, com os cabelos lisos, sempre alinhados e ligeiramente caídos à lateral esquerda da grande cabeça, dando ao rosto o formato obtuso de um triângulo e cujo nariz projetara-se com pelo menos um centímetro e meio maior que os narizes comuns - pontudo e angulado, induzindo à combinação para o cultivo de um vasto bigode de fios mal aparados que cobria-lhe boa parte da boca de lábios finos. Por muito tempo só se falou do assunto na quase pacata, Juracy.
Nas primeiras horas da manhã, que nunca iniciavam após a batida das cinco e meia, Élvio, tratava dos bichos - oito galinhas batizadas com nomes de algarismos - 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 e que davam de cinco a seis ovos por dia, mais o galo, chamado ironicamente de Pinto Grande, por ser pequeno; dois casais de patos, Zé Preto, Alemão, Branquela e Choca; um bode, Eliakin, muito nervoso e de poucas palavras, segundo ele e uma cabra mansa, Dengosa, que dela, mais ou menos, um litro de leite quente por dia ele tirava, sempre com orgulho, percebidos por quem o visse de longe, pelos passos desordenados, saltitantes e de braços abertos para o mundo com o jarro de leite numa das mãos e com um sorriso patético (?) estampado ao rosto. Élvio conhecia bem o trato com os animais, por isso mesmo, até Eliakin, o de poucas palavras, o respeitava.
Sem contar os dois canários de estimação, Zico e Feia, que mal cantavam e viviam empoleirados, quietos, mais parecendo duas peças embalsamadas na velha gaiola que ficava dependurada na parede de reboque estufado. De arames enferrujados e com as ripas que se esfarelavam quando mal tocadas, exigindo frequentes remendos com linhas e barbantes de cores diversas encontrados ao acaso e costurados com a destreza de mãos pacientes e decididas como as de Élvio. 
E, também, as brincadeiras com afagos mútuos com seu companheiro leal, Valente, um cão de barriga gorda de lombrigas, cujo bucho, irremediavelmente desforme, se arrastava pelo chão quando caminhava meio que sem direção à procura do que fazer ou do que comer, escondendo a magreza esquálida a um espectador desatento, acreditando este, pelo lapso,  tratar-se de um animal bem nutrido. 
De pelos de um marrom escuro e com algumas manchas brancas encardidas desenhadas ao corpo e de olho esquerdo, definitivamente selado pela paulada certeira recebida do vizinho embriagado, quando este, por engano, (teria sido mesmo engano?) numa noite chuvosa, invadiu o quintal da casa dos Pinto.

Obra de Salvador Dali
Seu Carlos, nunca admitiu a autoria, mas, Élvio, muito esperto, nunca suspeitou de outro se não do vizinho mal encarado e dado, vezes por outra, à cachaçaria e aos chingamentos e, pior, mantinha as constantes conversas, sorrateiras, com sua mãe, Dona Lisa, uma mulher de cabelos claros de quarenta e seis anos, de rosto bonito, mas, sisudo, próprio de beatas de carreira que vêem pecado em tudo e que escondia pelas vestes de cores neutras, um corpo esguio, equilibrado, com busto e glúteos avantajados, bem delineados, sugerindo também possuir um par de coxas sem igual aos quais, desde jovem, foram pretendidos e admirados pelos homens da cercania. 
Era conhecida nas redondezas pelo modo severo com que criara o único filho de pai viajante, desconhecido, que nunca voltou. 
Geralmente ele, Élvio, os via proseando em voz baixa, intercaladas a contidas gargalhadas, (do que riam?) próximos ao muro de metro e meio que dividia mal e tortamente os dois terrenos. 


Nunca compreendera como sua mãe dava a tal sujeito o que ele nunca tivera dela, nem mesmo quando, da única vez em que ficou doente, muito doente, com 45 graus de febre pelo magro corpo estatelado na cama sob os cuidados da única tia, Selena, na época ainda viva e do Padre Gian, que acompanhava sua mãe até sua casa, após a missa da seis. Escondia mágoa por isso.
As manhãs eram iguais, mudando somente em dias quentes e secos, quando podia sair para o trabalho, feliz, (?) vestindo a bermuda estampada, camiseta branca com um coração vermelho ao peito onde se estampou a inscrição I (coração) Juracy e com os tênis rotos de cardarços curtos, ou nos em dias em que amanheciam chuvosos e úmidos quando se cobria com a velha capa plástica preta e calçando as botas de borracha de cano longo que Padre Gian, o alto, lhe dera quando completara 18 anos, sempre foram um pouco apertadas aos pés.
Às dez em ponto, com passos como de um senhor absoluto das obrigações, dirigia-se à garagem da casa assobrada e mal caiada, que fora no passado a residência dos avós maternos, e se é que podemos chamar de garagem o pequeno espaço destelhado, de mato crescido que ficava nos fundos do quintal, próximo de onde Valente dormia. Único ponto do antigo palacete em que sua mãe tolerava a permanência do veículo e a pousada do cachorro. 


Montado e com a chave no contato de sua Honda 125cc, azul retocada à mão, com pneus necessitando de substituição, equipada com um baú amarelo canário, preso ao que seria o assento traseiro onde acomodava-se um antigo gravador de fita K7, Akay, um pequeno amplificador CCE e dois altos falantes sem marca de som estridentes, que ficavam presos pelas braçadeiras de alumínio escurecido, bem aparafusados, fixos ao corpo da motocileta. 


Como nos trios elétricos dos carnavais baianos, saía pelas ruas a tocar bem alto a seleção musical cuidadosamente preparada por ele nas folgas das tardes de domingo, só de canções do Rei, Roberto Carlos, Odair José e Reginaldo Rossi, seus ídolos, entre elas seguiam os anúncios acalorados, gravados por ele mesmo no banheiro de casa quando a mãe, Dona Lisa, não estava, das ofertas e liquidações encomendados pelos proprietários das lojas de móveis, armarinhos, bazares, farmácias, açougues e quitandas da pequena e quase pacata, Juracy. 
Élvio, o ET, sentia-se o publicitário, sabia que era um.


continua...

04/09/2011

"Senhor Ladrão"


Anúncio encontrado na Internet - Não conheço a procedência.

Prometo sigilo absoluto, pois não desejo ser preso por receptação de produto roubado.
Seria o “La garantia soy jo” ?
Da faixa acima o que feriu minha atenção, além do anúncio em si, que, de maneira absurda, bem retrata a realidade fantástica que vivem as pessoas desse país chamado Brasil, foi a garantia proposta pelo resignado comerciante.  
Ele oferece ao leitor, entre eles, o algoz, supondo ainda que saiba ler, a compra dos produtos que eventualmente seriam abstraídos de sua loja, através de um acordo comercial sigiloso, por debaixo do pano. Um acordo na base do “vamos dar um jeitinho nisso, deixa comigo e tudo bem”. A coisa se instalou mesmo.
Muito educado ele se expressa com um português bastante razoável e nitidamente cansado de ser roubado apela para a comunicação direta, franca, buscando o alvo com eficiência, dirigindo-se ao público em geral, indiscriminadamente, sem rodeios. Portanto, sem discriminações. Ele, além de tudo, deseja estar politicamente correto e contemporâneo à hipocrisia estabelecida.

Todos são suspeitos até que se prove o contrário e em sendo assim propõe a criação de regras mais objetivas e consequentemente, mais estáveis para o seu negócio. Foi o que concluiu o míope comerciante.
É no mínimo patético viver numa terra onde todos se confundem. Honestos e não, caem num grande caldeirão e misturados transformam-se numa sopa azeda, onde os espertalhões certamente se colocam como tempero dando o sabor à canja. 


Não há um único dia em que não nos deparamos pelos jornais, rádios, TVs e Internet com reportagens sobre corrupção, tráfico de influência, lavagem de dinheiro e outras falcatruas, onde não estejam envolvidos deputados, senadores, ministros e demais categorias de políticos.
São patéticas as tais Comissões de Justiça e Ética, CPIs e outras denominações promovidas por essas figuras exóticas e absolutamente descartáveis. Eles dão o tom indignado aos seus discursos em palanques e diante das câmeras e microfones a eles oferecidos gratuitamente (?) pela imprensa. Certos da atenção dos espectadores, falam como se não compactuassem com a ética, subversivamente, corporativista da classe, a mesma ética usada por traficantes, assassinos, estupradores e batedores de carteira. Seriam eles membros dessa outra classe também?
Assistimos resignados diariamente o show macabro dos micróbios que se tornaram o tempero da sopa azeda. Complacentes e levantando bandeiras de partidos políticos (vejo todos iguais, alguns um pouco mais iguais que outros), os elegemos a cada ano para o perpétuo controle do espetáculo medíocre da cena brasileira.
Aceitar ser confundido com um bandido nos faz, de certa forma, bandidos também. Aceitar a ideia com a argumentação da sobrevivência, do natural e do óbvio pelas circunstâncias, altera a percepção do transparente, deforma a visão.


Quando nos deparamos com anúncios escancaradamente transgressores como o visto acima, rimos das nossas próprias mazelas, da nossa condição de povo sem pátria, sem lei, sem nada. Assim admitindo nossa condição de colonizados, sem identidade, despersonalizados.


Quando elegemos corsários que se travestem de "homens públicos" e admitimos suas regras, as quais, aliás, não participamos diretamente, que não as julgamos e claramente mentirosas, unilaterais, acobertadas pelo discurso pseudo democráticas, nos travestimos de cidadãos. Vira um circo. É tudo uma grande mentira. Eles são todos iguais, absolutamente iguais. Todos, sem exceção.
Portanto, caro comerciante, não gaste a tinta e nem seu tempo comigo. Se você insistir com essas ideias, digo com todas as letras, vá se ferrar! Você e seu novo amigo ladrão. Se candidate, você se parece com um deles, sem pai identificado.





03/09/2011

Dias sem tsunamis.

Ontem foi meu primeiro dia de férias. Depois de uns 4 anos e meio, mais ou menos, consegui tirar uns dias para mergulhar na famosa "merecidas"
Não são muitos dias, apenas dez, contanto com dois sábados e dois domingos, sendo que, dois deles, nesse período conto como se fossem minhas folgas normais - de direito, como se diz. 
Pela minha atividade até, mesmo nas folgas, não me desligo completamente, como deveria fazê-lo. Acabo levando serviço pra casa às sextas feiras e leio emails pelo celular durante o sábado e domingo me envolvendo nas questões da TV e também porque os amigos pessoais, inocentemente e curiosos me perguntam sobre o meu trabalho durante a minha folga, tolhendo assim o relaxamento. Por favor amigos, estou de folga.
Além do fato que hoje em dia os televisores estão ligados em todos os lugares e quando me dou conta, estou eu lá querendo saber qual canal e o que estão transmitindo, assim me lembrando do trabalho. Portanto, normalmente, as minhas folgas são - mais ou menos folgas.
Considerando que na próxima semana teremos um feriado na quarta feira - dia da Independência, que teoricamente não trabalharia, líquido, em dias úteis, fiquei com quatro dias de férias. Quatro dias e uma sexta, que foi ontem, a qual matei conseguindo juntar à matemática da ausência temporária o número redondo de dez. Dez longos dias.
Planejei essas férias minúsculas pela pouca disponibilidade de tempo que tenho, vivo cercado de responsabilidades. Minuciosamente, arquitetei o plano nas caladas noites, na cama, elaborando tudo como se fosse um crime perfeito, sem deixar pistas. Desenhei passo a passo a fuga com pelo menos dois meses de antecedência.
Sem viagens longas dessa vez, pretendidas inicialmente aos países do leste europeu. Marcadas e canceladas deliberadamente por mim mesmo e bem decididas, sem frescuras. Muito menos queria ficar em casa onde seria bombardeado pelas eternas histórias da Miriam, nossa empregada há mais de vinte anos e, inevitavelmente, ao som do rádio e de tv's ligados. Não considerei arriscar essa hipótese nem por um minuto.
Um sujeito com 57 anos de idade que trabalha como um alucinado desde os 14 e ainda precisando mendigar para si próprio suas férias, pode apontar para alguma coisa de séria. Me pareceu latente - concluí que tem coisa errada comigo ou no modo de vida que levo. Por que que não poderia sumir por trinta dias, como muitos fazem? Não dava, não deu. E pior, constato que hoje, ainda no segundo dia da breve fuga o friozinho na barriga persiste. A ansiedade e a sensação de vazio me acompanham por onde eu for. Me perdoem a lamúria que parece exagerada, não é da minha intenção aborrecer a quem me lê, até porque, sei que podem virar a página e sair daqui a qualquer momento.
Aos que ficam digo que em minha vida tive poucas e verdadeiras férias. Algumas inesquecíveis, alegres, muito boas. Pude viajar para lugares do mundo aos quais sonhava conhecer desde a infância. Estive neles de corpo e alma, ao vivo e à cores, em 16 x 9 HD e em 3D. 
É fantástico botar os olhos e sentir os ventos dos lugares que sempre fizeram parte dos nossos sonhos. A gente quer pegar o que vê e levar pra casa, acho que por isso fotografamos e filmamos tudo e compramos bugigangas inúteis só para provarmos à todos e a nós mesmos quando voltamos, que tudo foi real, aconteceu. 
Tenho comigo que viajar é a coisa mais gostosa que existe, nada supera os dias que antecedem a data do embarque e dos próprios dias da viagem. Seja lá para onde eu vou. Acho que nem mesmo estar com mulheres das mais sensuais ou comer doces caseiros superam o prazer que tenho em sair pelo mundo.
Lembro de férias onde fiquei por aqui mesmo, por estar duro, sem dinheiro só me restando curtir o nada à fazer, em casa, ou, quando muito, dando uma esticadinha de poucos dias até a praia. Praia Grande, no Boqueirão, Cidade Ocian, Mongaguá, as mais frequentes.
Acho que são esses os nomes que damos aos municípios da baixada santista, que pra nós paulistanos vira tudo, Santos. 
Dividia as despesas e o aluguel de casas ou apartamentos pequenos e semi mobiliados com amigos e parentes para quatro ou cinco dias no máximo e com valores chorados e fora de temporada, pois ficava mais em conta nesses períodos, assim garantiamos as "merecidas"
Me divertia vendo as pessoas barrigudas e avermelhadas de corpo branquelo ao sol escaldante, lambuzadas de protetores solares e areia, estiradas nos tapetinhos de palha "pegando uma cor”. (roxa)
Com os que saboreavam os camarõezinhos no espeto vendidos pelos ambulantes de chapeuzinho e óculos escuros, porções de peixes porquinho, fritos em óleos bem queimados das frigideiras encardidas e vendidas nas barraquinhas que ficavam desordenadamente espalhadas pela orla. 
Ofereciam também cervejas meio geladas, batidas de maracujá com seus abundantes caroços pretos que transbordavam nos copos duplos de plástico, descartáveis, com bastante gelo, estes um pouco escuros, de água de procedência suspeita e pinga, muita pinga. 
Das pessoas que inesperadamente se levantavam e corriam de braços abertos, aos berros em direção ao mar, como numa curta liberdade paranóica, mergulhando nas águas do Atlântico com descuido, de boca aberta, engolindo a água salgada do mar misturada ao xixi dos beberrões e beberronas e possivelmente ao coco dos "diarrentos". 
Essas praias são catalogadas até hoje pelos jornais e rádios como impróprias para o banho. Incrível como somente no período de férias de verão a imprensa aborda esse assunto. 
Ninguém levava a sério a tal poluição até retornarem à São Paulo, quando as micoses e diarréias arrebentavam. Era um pega-pá-capá. O mata-lumbrigas corria solto.
Eventualmente marolas repentinas alcançavam os guardas-sóis desbotados que ficavam espetados na areia, esses que ainda hoje protegem a pele dos mais sensíveis - crianças, pessoas de idade e eu (uma mistura dos dois), inundando as roupas amontoadas entre as cadeirinhas de alumínio, meio amassadinhas, coloridas e com algumas costuras desfeitas que faziam a bunda doer rapidamente. Encharcavam os objetos que as pessoas insistem até hoje em carregar nos convescotes praianos,  molhando também as sacolas lotadas de sanduíches que ficavam meio esmagados de pão Pulmann e patê de sardinha em lata, verde ou vermelha da Coqueiro e as coxas e asas de frangos, fritos no dia anterior, os pastéis de carne, de palmito e tantos outros quitutes, incluindo as grandes fatias de melancia que no alagamento boiavam suavemente lembrando pétalas de rosas vermelhas que se misturavam aos chinelos, toalhas e restos de comidas dos vizinhos também desafortunados.
Era uma correria pra salvar tudo e nem se conhecia na época o termo Tsunami. Agora, anos mais tarde, quando os vejo na TV me recordo de pronto e com nostalgia dos bons e velhos tempos.
Ainda me lembro dos putaqueosparius e caralhos soltos pelos picniqueiros indignados com a natureza perversa que se atrevia a prejudicar o lazer de suas majestades. Alguns ainda em estado de à milanesa, pois sempre tinha um cunhado ou um tio que adorava se enrolar na areia quando saia do mar. Esses eram os que mais se manifestavam.
Na cena era comum as senhoras gordas, com seus uniformes de verão - maiôs anos 50, pretos ou verdes escuros, usando toquinhas azuis claras ou brancas, pra combinar, que serviam de proteção aos cabelos ralos e embranquecidos pelo tempo. Fingiam se afogar, algumas pareciam bem próximas a isso, gritavam desesperadas pedindo ajuda. A mim, diante da reação espontânea das pessoas, me parecia que a comida era mais importante do que os prováveis afogamentos. 
Alguns ainda se dispunham a arrastá-las metros acima como num ato heróico de salvamento. Vem vó… !!!  Mãããe, ajuda a vó !!!. 
Via castelos de areia sendo destruídos. Todos lapidados em estilo gótico, construídos habilmente por meninos e meninas com ajuda dos pais e tios, esses últimos geralmente cumprindo o papel dos legais da família, os brincalhões, os que fazem piadas sem graça - todos sentados à volta da bizarra escultura, preenchendo os andares cada vez mais altos da escultura com a areia escavada, acentuando o relevo surrealista da arquitetura.
Sem falar dos buracos cavados à mão ou com pasinhas plásticas, algumas de cabos quebrados que machucavam as mãos, onde se enterravam até os ombros os primos mais “divertidos”. Tudo fazia parte da festa. 
Naqueles dias nos sentíamos felizes, inclusive eu. Ao menos, procurava passar essa sensação para os meus. Éramos os donos do mundo em férias. 


Nada se comparava ao estar com uma coxa de frango numa das mãos, mesmo com um pouquinho de areia que os ventos inoportunos empurravam ao nosso encontro e na outra, uma Skol de latinha, quase gelada, acabada de sair da caixa de isopor que um dia fora branca. Largado, esparramado pela praia, não se importando com o sol do meio dia que traiçoeiramente, faria a pele da gente estourar em feridas já na segunda feira. Sentindo a onda leve, branda e sorrateira se aproximando aliviando as frieiras dos dedos dos pés. Isso que é vida!

Quanta gente, quanta alegria, a minha felicidade é um crediário quase pago... e uma Brasília amarela.
Hoje, aqui em Piracaia, que em tupy-guarani quer dizer, peixe queimado, ou algo assim, de férias e com os meus pensamentos, recordo dos bons e velhos tempos. Horrível essa expressão. 
Lapsos abruptos de saudade como de uma marola repentina que alaga tudo e leva de nós os bens mais preciosos. Não sou dado a saudosismo, mas viajei.  Me permiti agora criar um verbo que uso no tempo passado: saudosei.
Nesses momentos ela, a saudade, faz a gente pensar que tudo na época era colorido - de certa forma era, mas pensando bem, nem tanto. 
Pessoas e situações permanecem singelas na memória só quando a gente quer. Nessas horas o corpo flutua e invariavelmente alteramos partes da história a nosso favor, fazendo com que à cada empecilho, à cada fato triste, criamos um novo roteiro que nos leva a um final que nunca termina, mantendo a estória somente nas partes agradáveis. 
Somos humanos e podemos sonhar, ainda não pagamos impostos por eles.
Me dou conta, então, que posso sonhar mesmo estando acordado. Na verdade, qualquer um pode. Em  férias ou não, basta tentar. Mas tem que saber sonhar, para não se perder da realidade.
Vou curtir os nove dias restantes das férias e fazer com que minha vida toda seja como este momento - este minuto, sonhando um sonho sonhado, mesmo com o friozinho na barriga que me persegue desde criança. Buscando o passado, mas saboreando o que está presente com os olhos atentos, marcando bem o agora e sabendo que no futuro poderei lembrar desses dias como os bons e velhos tempos. Sem tsunamis, sem marolinhas. E se eles aparecerem do nada mudarei o roteiro a meu prazer, pois eu mesmo faço a minha história. Sempre e sem fim.




28/08/2011

Não se mexa, não respire e nem pense. Só assista.


Num dia da semana, não me lembro bem qual, estava eu dando duro no trabalho. Logo após o almoço - devia ser umas duas e meia. Não saberia dizer se estava frio ou calor, hoje em dia o clima anda muito estranho, indefinível muitas vezes.
Sinto sono após o almoço por isso procuro fazer refeições mais leves para a digestão não comprometer minha disposição.

Um pouco irritado com os telefones que não paravam de tocar, o blém blém do computador e celular anunciando emails chegando - recebo cerca de 400 por dia. O pessoal da equipe entrando e saindo da minha sala me passando problemas e pedindo orientações sobre isso e aquilo, enfim, tudo seguia o curso normal de um dia comum em uma vida ordinária. Esta palavra vem de ordem que gera organização e vivemos por ela, assim nos ensinaram e assim ensinamos nossos filhos.
Resolvi parar um pouco e sair da sala, relaxar por alguns minutos. É uma técnica boa andar sozinho pelo pátio externo da empresa e reparar nas coisas que nos cercam. Como só tenho um ano de empresa tem muita coisa a ser vista. Os edifícios antigos que abrigam os estúdios e os diversos departamentos da emissora. Eles guardam muitas histórias, algumas bizarras e divertidas, outras tristes que conhecia antes mesmo de vir pra cá e outras tantas que são contadas diariamente por colegas antigos de casa. Como eles gostam de falar dos bons e velhos tempos. Natural, boa parte de suas vidas e sonhos foram passados aqui. Tem muita gente boa nesta TV.
Vejo que os prédios precisam de tratamento, de uma boa pintura, ao menos uma caiação. São conectados uns aos outros por corredores e escadas que certamente foram adaptadas ao longo dos anos.
Nos jardins as árvores são bonitas, algumas são de tamanhos médios e outras enormes, as flores coloridas crescem anunciando a chegada da nova estação.
Pessoas circulam apressadas com papéis na mão com sorrisos sinceros e recebo cumprimentos, educadamente automáticos.
Bate o desejo de me sentar num daqueles bancos feitos de troncos de árvores, todos impermeabilizados por um verniz sintético e simetricamente distribuídos pelo bosque que fica próximo ao restaurante dos funcionários e apreciar a rotina sob o ponto de vista de quem não tem nada pra fazer. Quem sabe estender uma rede numa sombra entre árvores e puxar aquela palha. Não fiz isso, achei que não ficaria bem e poderia perder a hora, além do que onde iria arrumar uma rede. Me contive a apreciar o bucólico cenário ao som dos ruídos estridentes vindos dos caminhões que transitavam na Marginal do Tietê.
Depois de algum tempo voltei à minha sala a passos mais dirigidos, repassando a minha agenda. O dia tinha que ser concluído ordinariamente.

Ao me sentar diante do computador percebi que entre tantos emails um em especial me chamou a atenção. Um amigo me enviou, provavelmente sentindo a minha vibração.


Assunto: ARQUITETURA + ENGENHARIA + EQUILÍBRIO = SENSACIONAL.

No corpo do e mail o texto imperativo:

                                                             Não se mexa
                                                             Não respire
                                                             Nem pense
                                                             Só assista

E seguia um link.
Eu simplesmente deleto mensagens religiosas, palavras de alto ajuda, os Power Points da vida com imagens singelas ou de humor, mesmo as enviadas por amigos próximos. Não suporto, não tenho a menor paciência com elas. As tenho como terríveis Spans. Mesmo considerando a boa fé do amigo que enviou, as apago até da lixeira, guardando somente a boa fé e agradecendo comigo a sorte da amizade lembrada.
Mas esse eu cliquei. Por nada deixei de lado minha regra. 
O que assisti mudou o meu dia e os dias seguintes. De cara vi que não era somente um show bem iluminado ou uma apresentação circense curiosa. Muito mais que isso. A mensagem continha o que eu precisa realmente naquele momento - paz, concentração e resgate da minha alegria. O público assistia perplexo a serenidade do artista que apresentava muito mais que um espetáculo de malabáris.
É o nosso olhar diante das situações em que nos encontramos a cada instante da vida quem determina como vivemos, não importando onde, como e com quem e se estamos com alguém. O olhar - esse é o segredo pra se viver bem.
Enquanto assistia lembrei do filme A Vida é Bela - de como o personagem coloria as cenas cinzas para seu filho diante da realidade bruta dos tempos de guerra. Lucidez confundindo-se com loucura.
O resto do dia e dos dias seguintes foram mais brandos e objetivos. Concentrado e mais feliz acertei as pendências. O equilíbrio prevaleceu.

Valeu o clique.
Valeu, amigo, boa semana!

http://www.youtube.com/watch_popup?v=jJrzIdDUfT4&vq=medium


23/08/2011

Contando as lajotas



__ Seguindo, estou indo!

Respondo quando me perguntam como vou.

As ruas parecem cada vez mais estreitas,
congestionadas com tanta gente se espremendo, elas me assustam.
Os cruzamentos me estancam a todo momento, freqüentemente.
Se encostam em mim como eu nelas.
Olhos azuis, castanhos e esverdeados. Baixas e altas, esguias e esbeltas.
Estranhas em volta de mim, pisando na grama ou nas pontas de cigarros acesos.

E eu contando as lajotas na calçada esperando o sinal me deixar passar.

Não conheço nenhuma delas e parecemos todos amigos.
O cão guía o homem pela guía.
O céu com nuvens cinzas enquanto o frio me esfria.
Quanta roupa colorida à luz do dia.
Ruas sinuosas te deixam marcas vertiginosas e as pessoas continuam pra lá e pra cá.
Os olhos castanhos amendoados gostariam de saber porque foi assim.

E me perguntam a todo momento como vou e eu repondo sem pensar
__ Seguindo, estou indo!
Abaixo a cabeça contando as lajotas da calçada esperando o sinal me deixar passar.
Só depois poderei contar, depois que o tempo passar.
Parece impossível poder acreditar mas é sensato assim pensar.
Dai o cinza vai azular e o frio esquentar.
Agora estou contando as lajotas na calçada esperando o sinal me deixar passar.

Foto do Blogueiro

21/08/2011

Um minuto no espelho por dia.

"Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e a arte de representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida - umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana. Não é o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso."
Fernando Pessoa


Algumas pessoas têm a capacidade de sintetizar ideias de forma excepcional. Fernando Pessoa é uma delas. Incrível o que ele disse sobre o escrever e ignorar a vida. A sensação é de que foi pensado hoje, vale para qualquer tempo.
Enquanto nos dedicamos à literatura - seja ela qual for, sem discriminações, nos sentimos como que nos vendo num espelho. Olho no olho, gesto isolado, privado, único. 
Com mais atenção percebemos  coisas que nem sempre vem ao agrado. Não físico, mas de alma, escondido, bem guardado.Desviamos a atenção na tentativa de mos burlarmos e buscamos os pontos positivos. O exercício é curioso e digno de experimentação.


Ignorar a vida - suponho que o poeta quis dizer colorir a vida. Enquanto escrevemos criamos o que seria real, sem alterarmos a realidade. Um sonho sempre é narrado com grande intensidade. Fazemos isso todos os dias.


Um minuto no espelho por dia, possivelmente, nos daria melhores sonhos.










Bom domingo.













20/08/2011

Primeiro dia da folga.

Manhã de sábado e pela janela da sala vejo que o tempo não está lá essas coisas - uma chuva leve e ligeiramente frio como a moça do tempo anunciou para hoje em São Paulo. Me lembro que deixei mensagem no facebook dizendo que mesmo com essa previsão acinzentada eu iria curtir a minha folga. Afinal, sábados e domingos de boa na minha vida não foram tão comuns. Para muitos é normal - eu trabalhei a maioria deles desde os meus 20 anos. De uns tempos para cá venho saboreando os finais de semana como um bom burguês. Só falta a barriga crescer.
Nem sei porque deixei a mensagem na rede, talvez para convidar os amigos a apertarem o botão do foda-se. Folga é pra isso mesmo.

Além do fato de eu estar de folga que por si só é muito bom, me dei conta de que estou com a maior preguiça. O corpo meio dolorido e com um pouco de sono ainda, pensei que poderia ter ficado na cama por mais algum tempo. A casa em silêncio às cinco e meia da manhã só a Lucy, minha cachorrinha adorada, percebeu que seu dono já abria a geladeira para pegar o leite. Ouvi seus chorinhos no quintal.

- Vai deitar, Lucy, ainda é cedo.

Que coisa pra se dizer para o animal de estimação. Dando uma ordem a qual eu mesmo deveria cumprir.


Vá dormir animal. Pensei comigo mesmo. Não, estou de folga e quero aproveitar todos os minutos desses dois dias.

Lucy - também chamada de Ucha
Tomando meu café com leite na cozinha, sentado na cadeira de sempre e com um leve sorriso no rosto, contemplei os dias de descanso. Listei os poucos compromissos assumidos que resolveria logo pela manhã e depois, nada, absolutamente nada iria fazer. De tudo que havia planejado ao longo da semana, geralmente no carro a caminho do trabalho, naquele momento o "fazer nada" é o que mais me deixava tranquilo.




- Lucy, já disse, vai dormir!  Ela continuava a reclamar por mim.

Abri a porta da cozinha e deixei-a entrar. Uma ou duas bolachinhas, alguns afagos e ela finalmente me olhou agradecida retornando assim para sua caminha - um cobertorzinho enrolado dentro da casinha feita em plástico resistente de cor amarela e vermelha alojada sob uma escada em caracol que dá acesso a um quartinho onde minha mulher guarda seus artesanatos, protegida da chuva e toda feliz, sábia em sua decisão canina, recolheu-se ao sono dos cachorros satisfeitos.
E eu ali sentado na cadeira da cozinha, magnânimo, me dei conta da lição, recebida de quem dizem pertencer ao mundo animal - irracional.

O desejo de aproveitar intensamente a manhã do primeiro dia de folga num sobressalto me pôs em pé. Os irriquietos são assim mesmo. Sou um deles - membro vitalício do clube dos que dormem pouco.
Logo em seguida já estava eu diante do computador, lendo emails e as baboseiras de sempre nos sites de notícias. Tungagens políticas, corrupções pelo Brasil, colarinhos brancos presos e soltos quase que em seguida, fofocas, quem matou a tal Norma em alguma novela, os eliminados da Fazenda 4 e outras mais inutilidades.
Lendo e ao mesmo tempo lembrando da semana de trabalho duro que tive, as pendências pra segunda feira pela manhã.  Amigos, família - minha netinha Alice que opera na terça feira.
Veio à mente aqueles que não nos querem mais por perto, antigos e mais recentes.  A gente mobiliza ao longo da vida os afetos e também os desafetos. Precisamos sempre dirimir nossas mágoas, esclarecer os mal entendidos. Nada como uma sincera e boa prosa para que nomes em nossas listas saiam da coluna negativa e passem para a positiva. A sensação de felicidade nessas oportunidades se sobrepõe aos aborrecimentos passados.

Vejo agora que meia manhã do primeiro dia de folga se foi. Ainda tenho 1/4 do meio dia, meio dia e mais o resto do sábado. E todo o domingo pela frente.

Meu único compromisso para hoje é ir até o cartório para reconhecer firma num documento de compra e venda. Incrível que em 2011ainda precisamos "reconhecer firma" em documentos e que "Cartórios" ainda existamCoisas de tunguista. Coisas de caras de pau.
Sorte da Lucy que é irracional e nunca precisará reconhecer firma.

Com sua licença, se você está trabalhando, desejo um bom dia de trabalho e se está de folga, boa folga.

Aperte o botão.


07/08/2011

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Sentado num banco de cimento quase gelado numa pracinha em Piracaia - 90 quilômettos de São Paulo, neste último sábado olhando a movimentação dos transeuntes me dei conta que bem em frente a mim do outro lado da rua estava ela vestida de branco e azul e engraçando-se toda comigo - Lotérica Piracaia.

Sem ter nada o que fazer numa manhã quente onde o sol batia forte e muito fria onde a luz se escondia, passei a observar o entra e sai das pessoas na pequena loja de porta de aço recolhida e enrolada bem abaixo do cartaz onde anunciava o nome do estabelecimento.

Carros disputavam espaços próximos a agência e deles desciam pessoas um tanto quanto apressadas.
Gente com chapéu de palha e botinas marrons e pretas,  outras mais moderninhas, idosos e gente de meia idade. Homens, mulheres e crianças acompanhadas de adultos.
Alguns carros com lama ressecada nos pneus contrastando com os cinzas, amarelos, verdes e azuis das carrocerias dos fusquinhas, Brasílias e outros carrões mais modernos como também algumas motos 125cc.

Pra mim eram sitiantes na maioria e em dia de meia folga cumprindo o ritual da fé e como na quarta feira  ninguém ganhou o prêmio máximo, anunciava-se que o valor acumulado estava em torno de 32 milhões - quem sabe alguém tire a sorte grande neste dia e por isso valia a pena " uma fezinha" em Nossa Senhora dos Esperançosos.

Nas quase duas horas que fiquei ali sentado distraindo-me com toda aquela movimentação vi entrar na pequena casa da sorte pelo menos umas duzentas pessoas - uma estimativa pois talvez pudesse ser até um pouco mais.
Claro que mantive a discrição até mesmo pra não chamar atenção de quem pudesse estar me observando - o que olha aquele tiozinho xereta de São Paulo balançando a cabeça com um conta-gente na mão?
Na tentativa da dissimulação olhava virava a cabeça para outras coisas também mesmo sem muitas opções - moças bonitas, senhoras bem vestidas à moda interiorana, bom dia daqui e dali e assim seguia.
A cidade estava bem movimentada neste sábado com um quezinho de alegria no ar.
Carros, motos, cães e gente. Iam e vinham de todos os lugares, um dia bem agitado para uma pacata cidade do interior.
Notei que todos que entravam na loja esboçavam sorrisos que me pareciam estranhos, indefiníveis. Aparentavam determinação rumo à mudança definitiva em suas vidas. Semblantes como dos guerreiros medievais. Bravos guerreiros. Quando saiam da loja essa característica ficava mais evidente. O inimigo fora atingido no alvo, agora era só esperar.
E eu ali sentado no banco da praça curtindo o meu dia de folga assistindo o ritual do povo piracaiense e porque não dizer talvez de muitos brasileiros que faziam a mesma coisa naquele momento.
Pensei então o que faria eu com 32 milhões na conta bancária - coisa de quem não tinha mais nada pra fazer mesmo.

Registro os meus pensamentos que acho duraram alguns minutos - pareceram horas - imaginei depois como deveria estar com cara de paisagem enquanto sonhava.

__ Nossa, é muita grana! Deixaria de trabalhar do jeito que trabalho na mesma hora e mandaria muita gente à merda!

__ Faria isso e aquilo… relacionei umas cinquenta coisas pelo menos.

__ Não falaria pra ninguém sobre a fortuna. Ficaria na minha…

E meio que escondendo um remorso repentino pela tamanha soberba, numa espécie de complexo de culpa enrrustida, complacente, proclamei:

__ Ajudaria muita gente. Meus filhos, meus genros e nora e minhas netas. Os amigos mais necessitados não seriam esquecidos. E porque não montar uma creche, um asilo e quem sabe um orfanato?
Sim, faria isso tudo e com eterno agradecimento pela graça recebida, estaria de bem com Ele. (Quem sabe Ele percebesse agora esses meus nobres pensamentos e me desse uma forcinha com o prêmio - que profundeza de pensamentos diante de eu me apropriar dos 32 milhões acumulados).

Mesmo sem chapéu de palha e com jeitão de caipira paulistano pedi pra minha mulher que naquele momento vinha ao meu encontro, que fizesse um jogo pra mim - evito agências bancárias, supermercados ou qualquer outra situação onde tenha que encarar filas. Não suporto esperar.
Ela foi gentil aos meus apelos, atravessou a rua com os números sugeridos nas mãos e encarou a fila com sábia paciência. Fez a minha aposta com fé enquanto eu, do outro lado da rua sentado no banco de cimento, continuava a olhar as moças bonitas que passavam pela rua e a contar o número de pessoas que atravessavam a Porta da Esperança.

Hoje um domingo com sol de inverno em São Paulo, diante do meu novo computador leio no site o resultado da Mega-Sena de ontem:

Um ganhador  -  07 10 32 43 47 54 

Sem creches, sem asilos e orfanatos e na mesma os parentes e amigos ficarão. Acho que Ele preferiu assim.

E pior, não mandarei ninguém à merda. Ao menos por enquanto.

Bom domingo.

03/08/2011

Ler o horóscopo diariamente significa que precisamos de férias?



Não sei porque, mas geralmente pela manhã quando busco algum site de notícias, invariavelmente me dou conta que estou lendo o meu horóscopo.
A ideia ao entrar num site de notícias logo pela manhã é encontrar alguma informação que me prenda a atenção por um tempo pelo menos, assim me ajudando a despertar. 
Pura bisbilhotice global.
Uma coisa aqui outra ali e em menos de um minuto lá estou eu clicando no "Capricórnio". 
Gesto involuntário que depois de lida a mensagem a frase vem à mente na velocidade da luz: bobagem ou um - será? 
Parece difícil começar o dia sem dar uma passadinha por lá e saber o que nos espera e, claro, questionar quando a previsão não é lá essas coisas. Seria um primeiro toque de esperança?
Na real saber o que nos espera a gente sabe - o de sempre: encarar o trânsito na ida e na volta, muito trabalho, compromissos, horários apertados, gente pedindo isso e aquilo. Aflições, expectativas, planejamentos, realizações e por ai vai. Família, trabalho, amigos e encrenqueiros (nas três categorias).
Durante a semana a rotina nos deixa com a sensação do "sem graça". Lá no fundo não é bem assim.
O pior de tudo que depois de lida a previsão astral vem o exercício da interpretação com associações com tudo e todos que nos cercam.

Hoje por exemplo:

"A maioria das pessoas com as quais convive ainda não lhe disse tudo que sente e pensa quando você as fere, mesmo sem perceber. Marte anuncia que há descontentes. O difícil será ler suas atitudes. Seja o primeiro a propor o dialogo construtivo"

Será que os marcianos estão preocupados com as pessoas que nasceram entre o período de dezembro e janeiro anunciando que estão descontentes com a gente? 
Caramba! Em meio a 7 bilhões de seres humanos que vivem neste lindo planeta azul é natural que haja descontentes. Pra mim é certo que tem aos montes.
Propor diálogo parece mais oferecimento de trégua em tempos de guerra.
O pior é que não posso nem reclamar - o cara que escreve e leia e considere quem quiser.

Proponho a mim mesmo - Meu caro, se recolha para umas férias, descanse e desligue-se de tudo, inclusive dos astros conspiradores. Relaxe, curta mais a vida!

Em tempo: Marcianos, plutonianos, jupiterianos, mercurianos e demais ET's - vão plantar batatas!!!

Lua, você não, você pode ficar, por favor.