24/06/2012

O pneu furado.

Não se deu conta Cícero quando pegou sua moto 125cc nos fundos da garagem de sua casa que um dos pneus, o traseiro, estava murcho. Sentou-se ao banco acomodando-se a ele e com a chave na ignição girou o contato. A máquina foi acionada e com o capacete somente apoiado sobre a cabeça e a ponta das botinas encostando o chão, girou o braço da motocicleta na tentativa de posicioná-la para a saída. Nesse momento percebeu o problema.
Desligou o motor, levantou-se, apoiou o capacete sobre uma mesinha próxima e resmungou alguma coisa.
Na cozinha Dona Antonia ajeitava a pia. Sobras de pão, uma xícara com restos de um café com leite mais para o escuro e um pote de margarina quase vazio com a tampa ao lado estavam ainda sobre a mesa e ela tudo recolhia como fazia todas as manhãs. A cena se repetia naquele amanhecer de dia frio e chuvoso em São Paulo.

Cícero aproximou-se ainda de cara fechada, desviou de sua mãe e foi direto a um antigo móvel de madeira que ocupava o canto esquerdo da cozinha, bem ao lado da geladeira. 
Numa das gavetas ele guardava uma bolsa com algumas ferramentas. Embora Dona Antonia sempre reclamasse que ali não era lugar para a guarda da bolsa suja de graxa, Cícero insistia em mantê-la por lá, coisa que fazia desde os tempos de criança.
Carregou a bolsa com as ferramentas até a garagem. Garagem não é bem o nome que se deveria dar àquela cobertura de telhas de zinco de pouco mais de dois metros de altura com uns quase dois metros e meio de comprimento e uns dois de largura. Na verdade não passava de um barracão improvisado, protegido nas laterais e fundos com pedaços de madeira, restos de caixotes de frutas. Piso de terra batida parecia até um cimentado.
No trajeto da cozinha até a garagem Cícero ouviu sua mãe falando alguma coisa. De certo alguma repreensão, mais uma das tantas que ouvia desde seus primeiros dias de vida. Vai se fudê, pensou ele. 
Posicionou a motocicleta sobre um cavalete improvisado, abriu o zipper da bolsa e buscou uma chave de boca. Em pouco tempo a roda estava fora do lugar, solta, pronta para ser retirada dela o pneu com a câmara furada. Fez tudo isso em pouco tempo, pois a pratica dos últimos tempos criou a rotina que agilizava o processo. Maldito pneu, está mais liso que um sabão.
Bem próximo à sua casa na Rua Vieira Resende, Seu Ernesto da borracharia já estava com as portas abertas e viu seu primeiro cliente do dia chegar todo molhado pela chuva fina que caia, com uma câmara na mão esquerda e um pneu de riscos não profundos na outra.
Bom dia daqui, bom dia dali e vinte e cinco minutos depois o serviço estava feito. Quanto é? Dez reais pra você Ciço. Puta que pariu, comecei o dia no prejuízo já. Marca aí que acerto a noite Seu Ernesto.
De volta a garagem o pneu foi colocado na motocicleta com muita rapidez. Cícero realmente pegou o jeito de fazer o serviço. Esbaforido e tentando recuperar o atraso de pelo menos uma hora, recolheu as ferramentas guardado-as na velha bolsa marrom suja de graxa e seguiu até a cozinha.
Dona Antonia lavava umas loucinhas na pia e quando viu seu filho aproximar-se lançou um palavrão em voz baixa. Baixa não o suficiente para que Cícero não a ouvisse.
Aparentemente não importando-se com os resmungos da bruxa, guardou a bolsa na gaveta do móvel antigo. Velha filha da puta, pensou.
Foi ao encontro da moto e se deu conta que chave não estava onde julgava te-la deixado, ao lado do capacete sobre a mesinha da garagem. Procurou pelos cantos do ambiente e nada. Seu rosto quando ansioso ficava com um quê mais patético que o normal. Não se poderia dizer que Cícero era um rapaz bonito. Seu semblante muitas vezes assustava criancinhas e muitas pessoas o julgavam um débil. Os cabelos negros que mantinha quase que totalmente raspados acentuavam o formato da cabeça grande e os olhos pequenos castanhos escuros e distantes mais do que o normal um do outro o tornavam mais feio ainda. O nariz gordo projetado para um dos lados - em dias quentes ele ia para a direita e nos frios para a esquerda, dava ao observador a certeza de tratar-se de um imbecil.
Depois de algum tempo pensou que poderia ter recolhido a chave junto com as ferramentas e na bolsa marrom suja de graxa ela poderia estar.
Seguiu até a cozinha e bem próximo dela ouvia sua mãe aos berros - ainda não foi trabalhar? é um vagabundo mesmo. Moleque sem responsabilidade. Não sei onde eu estava com a cabeça quando fiz esse troço nojento. Valha-me Deus.
Cícero calado, abriu a gaveta e de dentro da bolsa buscou a chave da motocicleta. Dona Antonia não parava com os insultos e num repente, a mão ainda dentro da bolsa alcançou um grifo. O suor escocrria-lhe pelo rosto misturando-se a água da chuva que o ensopava. O ódio veio-lhe à cabeça e em pé ante pé aproximou-se da mãe que estava apoiada na pia de costas para ele.  Desferiu-lhe um golpe certeiro com toda a força que o braço pôde alcançar na cabeça de Dona Antonia.
Os cabelos curtos e brancos, levemente ondulados, muito rapidamente tingiram-se de vermelho pelo sangue que escorria. Um gemido agudo se ouviu e um ruido de prato se quebrando dentro da pia deu o tom à cena tétrica.
Desfalecida ao chão e com os olhos semi abertos, Cícero viu sua mãe agora em silêncio. O sangue não parava de jorrar e se esparramar em direção à porta da cozinha.
De súbito a lucidez veio-lhe e o remorso repentino a galope sacudia-lhe a alma. O que fazer agora? Mãe, mãe… a senhora está bem? Desculpe mãe, perdi a cabeça.
Nada de nada. A velha não respondia, embora algum movimento no peito dava sinais de que ainda vivia. Cícero julgou ter matado sua mãe.
Decidiu então esconder o corpo. Mas como? A vizinhança fofoqueira iria descobrir e encriminá-lo. Tudo passava à mente perturbada de Cícero - que monstro mataria sua própria mãe?
Teria que se desfazer do corpo de tal maneira que ninguém pudesse descobrir. Embora Dona Antonia fosse de estatura baixa, sua largura era desproporcional, na verdade ela era bem gorda e muita pesada.
Ajoelhado próximo ao corpo da mãe Cícero levou os olhos até o porta facas, com cinco delas de vários tamanhos, dependuradas e que ficava fixo na parede entre a pia e o fogão. Uma ideia lhe ocorreu.
Quatro horas depois pedaços do que fora o um corpo humano por inteiro foram embalados em sacos plásticos pretos. Somaram-se onze sacos médios e um de tamanho um pouco maior.
De dois em dois sacos eles foram recolhidos e colocados no porta objetos da motocicleta e jogados em terrenos baldios e em matas fechadas distantes de sua casa. Cícero foi criterioso na tentativa de esconder os restos de Dona Antonia. 
O dia passou rápido e já eram quase cinco da tarde quando o último saco, o maior, o que não cabia no porta objetos, foi transportado sobre o tanque de gasolina protegido pelas pernas do condutor. 
Seguia Cícero pela Marginal Tietê em meio ao trânsito intenso. Motoqueiro profissional, era habilidoso em cortar os automóveis e caminhões pelas avenidas e ruas sempre movimentadas.

Mas, de súbito um caminhão enorme dos antigos, um FNM - fenemê, como se dizia antigamente, que transportava combustível clandestino, em meio a madeiras de corte não autorizado, saiu da pista da direita desviando de um Gordini 68 estacionado por problemas mecânicos em local não permitido nesta via. Atravessou a pista central indo até a da esquerda, atingindo em cheio e passando por cima da motocicleta de Cícero. O acidente fatal seguido de forte explosão destroçou e carbonizou os corpos de Cícero e os restos de Dona Antonia que estavam no saco plástico sobre o tanque de gasolina.
O que sobrou foi enterrado num único túmulo, como indigente no Cemitério Municipal da Paz, por coincidência próximo à Rua Vieira Resende. Não se pôde identificar o proprietário da moto pois a documentação não existia, nem dela e nem do proprietário. Cícero havia comprado uma moto roubada de um bandido pé de chinelo do bairro por R$ 1.200,00 em duas parcelas, dois anos antes.
Seu Ernesto, o borracheiro reclama até hoje os dez reais que Cícero pendurou e não pagou. O filho da puta sumiu e nunca mais foi visto pela região. Da mãe, Dona Antonia, pouco se sabia, mas para seu Ernesto ela não passava de outra caloteira sem vergonha.

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