23/09/2012

Abaixo da Linha do Equador

Em tempos de Google, Facebook, emails, Instagran e tantos outros, a boa e velha carta escrita à mão, dobrada com cuidado para ser guardada no envelope e selada para seguir destino, pode surpreender. Nostálgica, mas ainda eficiente.

Imagem Google
Ernesto pegou o envolepe na caixa do correio. Não era seu costume, mas percebendo a portinha entre aberta, o fez. Não era daqueles impressos automaticamente, do tipo que contenham boletos bancários ou propagandas oferecendo produtos diferenciados a preços irresistíveis. O nome e o endereço do destinatário foram escritos à mão e com jeito de letra feminina. O volume da correspondência fazia o envelope ficar gordo, pelos menos umas três folhas dobradas faziam o recheio. Dava pra sentir.
Instintivamente o colocou por dentro do bolso do paletó e entrou na casa. Cumprimentou Daiana, sua jovem esposa nascida em Maceió e seguiu para o quarto. Lá, ansioso pegou a carta, confirmou o nome do destinatário e em seguida procurou no verso quem era o remetente. Um nome estranho não identificado com  endereço menos ainda:

João Antonio da Cruz - Rua 14, número, 6 - Fundos - Carapicuiba, SP. CEP 040320-4.

O carimbo dos correios sobre os selos correspondia à região do envio.



__ Ernesto!  Daiana gritou da cozinha.
De pronto, num súbido e sonoro Oi, Ernesto respondeu ao chamado.
__ A janta está na mesa, amor, vem logo se não esfria!
__ To indo, meu amorzinho, desço já.

Decidiu então abrir a carta somente após o jantar, Daiana poderia desconfiar caso o conteúdo não pudesse ser revelado. Algo dizia a ele que encrencas estariam por acontecer e de certo o comprometeriam. Após ao jantar ou mesmo na manhã seguinte, longe de casa. Sorte sua a mulher não ter procurado a caixa do correio e mais sorte ainda ele ter feito isso, coisa de Deus, pensou.

O jantar foi servido e apreciado com os elogios de sempre. Daiana apesar de jovem, apenas 20 anos e já com dois de casada, tinha a mão para a culinária, conta ela que é provável genética materna. Preparou para o marido um arroz e feijão, aromatizado com folhas de louro que davam à fragrância mais estímulo ao apetite. Um refogadinho de abobrinha com carne moída de segunda, dois ovos fritos com gemas moles e a salada de alface com tomates e  rodelas de cebola complementavam o cardápio.

__ Meu amor, parabéns! Você cozinha como ninguém. Nem minha mãe faria uma comida tão saborosa como essa. 

Era tudo o que Daiana gostava de ouvir para sentir-se envaidecida. Ernesto, seu marido de 42 anos era um sonho materializado, um homem digno, respeitador, trabalhador e muito honesto e tudo a ele fazia com satisfação e com uma espécie de gratidão. O casal vivia como dois pombinhos apaixonados, apesar da diferença de idade eles pareciam dois jovens adolescentes em eterno namoro.

Ernesto escondia a apreensão durante o jantar. A correspondência tinha-lhe tirado o sossego, mas a maturidade e o talento para dissimulação faziam dele um perfeito ator de tal forma que ela jamais teria como perceber. O frio na barriga vinha-lhe em arremedos obtusos, impulsos nervosos quase descontrolados seguidos por afoitos pigarros como engasgado estivesse que provocavam uma vermelhidão em seu rosto esguio, de nariz fino e projetado disfarçados pelo bigode extenso e com barba por fazer.

__ Coma devagar, meu amor. Você está cansado de tanto trabalhar, procure relaxar, meu bem.

O tempo passou e uma hora depois já com o estômago cheio, Ernesto conseguiu trancar-se no banheiro com a desculpa de um repentino desarranjo. 
Pegou o envelope que escondia na cueca, acomodou-se no vaso e em silêncio tentou abrir a carta. Estava bem colada e decidiu ansioso rasga-la pela lateral. Dentro continha três folhas dobradas e uma fotografia colorida meio desbotada. Fixou-se na foto reveladora, altamente comprometedora, que por si só fez com que Ernesto soltasse um descarrego volumoso e um gemido consideravelmente alto e também o petrificado:

__ Puta que o pariu!

Três folhas com letrinhas miúdas, suavemente escritas, com as palavras bem distribuídas nas linhas pautadas em azul das folhas de papel de caderno escolar que davam ao texto o tom perturbador e  ameaçador de quem as escreveu, claramente com todo o ódio do mundo, mas com muita segurança. E a fotografia que mostrava uma cena bucolicamente familiar com ele e outras três pessoas, que por si só já era a prova indelével do crime. A caligrafia e a assinatura ele reconhecera de pronto, não era de outra pessoa se não a de Maria da Glória Abrantes, sua mulher, conhecida pelo apelido de Suzete que há três anos fora deixada em Venâncio, cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul, quase divisa com o Uruguai e com promessas do marido fiel, trabalhador e sonhador, de quem o quanto antes, o mais rapidamente possível iria receber um bom dinheiro para a viagem de reencontro da família. Para ela e os os dois filhos pequenos - um de 12 anos, Ernesto Dorneles Abrantes Filho e o outro de dez, Gilson Dorneles Abrantes, dessa forma pudessem pegar um avião e seguir viagem em busca de uma vida melhor em Barcelona, onde ele estaria já com um bom emprego e bem instalado para recebe-los. Esse era o trato.

Bígamo e traidor, fora descoberto. Ernesto quando chegou em São Paulo conheceu Daiana numa loja de produtos eletrônicos da Rua Santa Efigênia onde foi trabalhar como contador, quando se apaixonou por ela. Fez que fez até conquistar a confiança da inocente garota de 18 anos de idade, sobrinha do dono do bar vizinho onde almoçava todos os dias e com ela se casou meses depois utilizando documentos falsos que conseguira através de um amigo boliviano que conhecera recentemente. Adotou a partir daí o discreto nome de Luis Abrantes de Moraes. E não foi difícil convencer a mãe de Daiana, cozinheira do bar, que rendeu-se quase que de pronto diante dos apelos convincentes do futuro genro e também pelas boas perspectivas financeiras que ele insinuava à sogra na carreira promissora de contabilista.

Ernesto, agora Luis, ao se casar exigiu que Daiana parasse de trabalhar. Seu bom salário daria para ambos viverem muito bem. Fariam ao menos uma vez por ano, nas férias dele, viajens pelo mundo. Daiana sonhou a vida toda conhecer o mundo e Barcelona seria a primeira cidade que o marido iria leva-la para conhecer.
Ela, então dona de casa e com as tardes livres encontrou na internet um passa tempo confiável e criou um email, sua página no facebook onde postou sua foto com o lindo e dedicado marido, postou fotos do ambiente familiar, fotos da mãe, da tia, de antigas amigas. Postava quase que diariamente comentários da vida feliz de casada, dos filhos que teria com Luis no próximo ano e tantas outras coisas.

No universo de amigos anônimos dos sites de relacionamentos, Daiana conheceu Suzete, uma gaúcha muito simpática, casada e com dois filhos pré adolescentes, cujo marido se encontrava em Barcelona trabalhando para garantir o futuro da família e com ela fez uma intensa amizade virtual. Embora a diferença de idades entre elas fosse consideravelmente grande - uma com 38 anos e a outra com apenas 20, elas se tornaram muito confidentes, boas amigas de tardes alegres regadas ao café com bolo de fubá.

Dois meses depois Ernesto mudou-se às pressas para La Paz. Conseguiu com o velho amigo David, o boliviano da Rua Santa Efigênia, novos documentos e um emprego na agência dos correios local. Esperava ele, agora com o nome de José Garrido Valadares, numa cidade onde a banda larga é mais estreita, encontrar a paz em definitivo.
Se dispôs a ser feliz para sempre ao lado de Malenga, uma peruana de seios grandes, de apenas 19 anos de idade, cujos pais, um equatoriano e uma venezuelana, assassinados dois anos antes de se conhecerem por traficantes colombianos quando atravessam de barco, numa calada noite de lua cheia o rio que corta o Brasil, Argentina e o Paraguai.

Suzete e Daiana se conheceram pessoalmente quando tempos depois a gaúcha, deixando os filhos provisoriamente com os avós maternos, seguiu para São Paulo e da simpatia, carinho e afeição da jovem alagoana para sempre o convívio ela compartilhou e sempre regado por boas garrafas de vinhos chilenos.

E tudo terminou bem, como num clique bem salvo.


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