12/05/2012

Era uma vez

Certa vez um rapaz foi supreendido enquanto trabalhava duro numa mecânica ao ver uma linda moça de cabelos claros passar apressadamente pela calçada. Ela não devia ter mais que dezeseis anos, quinze talvez, e para ele, em tão curto espaço de tempo, pareceu tratar-se da mais linda entre todas as lindas mocinhas que os seus olhos já viram. Chamou sua atenção a voz suave de menina misturada ao riso quase escancarado que ela esbanjava espontaneamente, destacando-se das amigas que seguiam juntas, todas de braços entrelaçados e também pelos grandes olhos esverdeados, bem reluzentes,  que de relance pôde perceber. Mesmo sendo muito tímido, nos seus tenros 22 anos, num salto colocou-se à porta para observá-la melhor.
O peito explodiu como numa erupção de um vulcão há muito adormecido, a respiração veio-lhe às pressas, de forma ofegante e o suor frio escorreu-lhe como cascata pelo rosto sujo de graxa.
Seguiam pela Rua 21 de Abril, logradouro muito conhecido do bairro do Brás, em São Paulo que não parava de crescer. Caminhavam em direção à Avenida Celso Garcia, por onde os bondes elétricos circulavam freneticamente, lotados de operários, em direção aos confins da zona leste. Os finais das tardes naqueles tempos eram mais alegres,  pareciam, quase uma festa.
De certo, ela trabalhava em alguma entre tantas tecelagens que existiam na região, à época infestada de imigrantes italianos. Hoje, por lá, os imigrantes bolivianos dividem os espaços dos cortiços com os migrantes nordestinos do Brasil.

Loira natural, de cabelos longos levemente ondulados, presos a um laço de tecido rosa com tamanho desproporcional,  muito em moda naquela primavera de 1952. O vestido, um estampado discreto, também em tom rosa, de pregas largas que cobria-lhe os joelhos. Foi a imagem que a memória guardou por toda a vida daquele jovem magro, moreno de cabelos castanhos escuros e muito lisos, de semblante sereno nos seus 1.85 de altura, cuja expressão constantemente humilde escondia um ser humano sábio de  dignidade sem igual.
Era final de tarde e ele bem que podia encerrar o expediente, mas o serviço era tanto que não poderia furtar-se ao retorno. O chefe rabugento logo gritou por ele e resignando-se, voltou-se, vendo a jovem perder-se entre tantos à caminho do bonde que a levaria certamente ao Éden. 
Nos dias seguintes, sempre por volta das cinco e quarenta e cinco da tarde, o rapaz postava-se à porta do estabelecimento aguardando ansiosamente a moça bonita passar e a cada dia ele esperava por um olhar da linda flor, nem que se fosse um breve olhar, um olhar do acaso, um daqueles de relance, despretensiosos, mas nada acontecia.
A cena a cada dia durava pouco mais de um minuto e meio - entre ela aparecer, passar por ele e desaparecer na multidão.
Os dias se tornaram longos a espera desse minuto e meio e as noites, ficaram insones, desoladas, mas ainda cobertas de sonhos. Um tímido sofre calado.
Até que um dia sua alma se encheu de coragem, o peito se abriu contra os maiores temores e praticamente sem ar nos pulmões, cumprimentou a moça com um quase inaudível Olá! Um gago teria dito o Olá! com maior clareza. Ela, surpreendentemente, retribui o tênue gracejo com um sorriso tímido nos lábios. Finalmente os olhares se cruzaram depois de algumas semanas de angústia. As almas se enxergaram e a partir desse dia ambos, o rapaz e a moça, aguardariam pelos encontros das cinco horas e quarenta e cinco minutos da tarde.
O um minuto e meio passou para cinco minutos em alguns dias. Para dez minutos, um pouco mais à frente. Chegando ao consentimento por parte dela, duas semanas depois, ao acompanhamento até ponto do bonde na Avenida Celso Garcia e, em mais outros dias, até bem próximo à casa da mocinha enamorada.
Numa tarde de sábado o jovem bateu palmas à porta da modesta casa onde ela residia. A mãe, uma italiana forte dada a falar aos gritos, dos fundos do quintal acenou indagando de quem se tratava e o que ele queria. Mais gago do que nunca e superando toda a timidez, sua maior característica, respondeu que gostaria de falar com ela e com o marido a respeito da jovem filha do casal.
Coisas do destino talvez, ambos permitiram o acesso do atrevido. A mocinha incrédula tremia como vara verde com medo do pai e da mãe. Sentada a um sofá de tecido remendado com o coração batendo aceleradamente, amaldiçoou o rapaz, mas, ao mesmo tempo, encantou-se com a superação daquele príncipe valente, que quase chorando, pedia sua mão para compromisso sério aos severos pais.
O namoro foi autorizado depois dos apelos do jovem que aos poucos tinha se acalmado. As  regras   ficaram claramente estabelecidas, os encontros estariam condicionados a dias e horários pré estabelecidos, de forma rigorosa e sempre com o acompanhamento de alguma das irmãs.
Como bons italianos a comemoração seguiu regada a vinho de garrafão, servido em canecas disformes lavadas com a água do poço que ficava bem próximo à cozinha.
O jovem experimentou a polenta deliciosa feita por aquela senhora que viria a ser sua sogra meses depois.
Com a moça loira estavam naquela tarde de sábado, o rapaz tímido, três irmãs dela, dois irmãos, seu pai e sua mãe.

Rua Rosa Pavone - Penha - São Paulo/SP - Brasil
Tornou-se um castelo encantado a modesta casa de número 26 da Rua Rosa Pavone, uma ladeira encravada no Jardim Concórdia do distrito da Penha, zona leste de São Paulo, cuja fachada caiada num branco acinzentado que mostrava pelas ranhuras e descascamentos, pedaços de uma antiga pintura amarelo ocre. A veneziana de duas folhas em madeira num azul claro desbotado, ficava mais a esquerda da parede frontal e uma porta que teria sido colocada ali um dia para servir de entrada principal, na verdade era mantida constantemente fechada, pois aberta daria acesso indevido ao quarto do casal, ela provocava uma desarmonia bruta no que poderia ser uma simples fachada. As acomodações da casa eram poucas. Além desse primeiro quarto, um outro se seguia colado e depois deste, uma cozinha de piso de cimento rústico e nela um fogão à lenha que aquecia os ambientes nos dias frios. Panelas, frigideiras e conchas dependuradas nas paredes por uma corda fina esticada de ponta a ponta.
A porta da cozinha era o acesso para os interiores da casa e era alcançado caminhando-se uns 20 metros por um corredor lateral que tinha do seu lado direito, um muro mal construído de tijolos à vista que dividia o terreno com o vizinho de baixo.
Um pouco mais aos fundos, próxima ainda à cozinha, via-se uma outra dependência. Servia esta de quarto para os meninos e no quintal, além de um galinheiro, estava uma horta bem plantada com um cercadinho próprio e isolado, mais distante, um banheiro.
Todos os cômodos foram construídos numa sequência quase que uniforme no tamanho, com mais ou menos nove metros quadrados cada um. O banheiro, bem menos que isso.

Dentre todos, naquela tarde de sábado de primavera, os mais felizes eram mesmo a moça e o rapaz. Ambos pressentiam os cinquenta e seis anos que se seguiriam, quando estariam juntos como marido e mulher. Felizes, criando seus dois únicos filhos, um levando o nome do pai e o mais novo, homenageando o avô paterno.
Em outubro de 2009 o ainda tímido que se tornara um senhor cansado de tanto trabalhar, partiu desta vida. Fez isso seis meses depois de completar 81 anos e ela, a moça loira, agora uma senhora de 76 anos, de cabelos brancos levemente ondulados, continua firme por aqui, saboreando as lembranças da vida feliz que teve ao lado de seu valente príncipe, tomando umas cervejinhas e saboreando um bom vinho na época de frio.
Continua feliz e serena, pois sabe que ele, seu príncipe, sem pressa a espera em algum lugar. Sempre haverá para eles a emoção dos fortuitos encontros das cinco e quarenta e cinco da tarde.

Obrigado pai, por ter escolhido a linda moça de olhos esverdeados reluzentes para ser minha mãe. Você acertou em cheio.
Mãe, feliz dia das mães! Agradeço a você por ter respondido com seu sorriso simpático ao primeiro alô tímido do meu pai. Sou grato a ambos, eternamente.

Meus filhos, meus amores, sua mãe um dia sorriu da mesma forma para mim e da mesma forma, um dia os seus filhos agradecerão os sorrisos e os apôs de vocês. Lembrem-se disso sempre e aproveitem cada minuto e meio da vida com eles e com vocês, não deixem escapar nada. Nada mesmo.

2 comentários:

Anônimo disse...

Bem bonito...até chorei...Beijos pai...André

Romeu disse...

Valeu Detão! Abs.