03/05/2015

Avanti Palestra!

Não deu ainda! Não foi dessa vez, mas não faz mal, estamos chegando. 
O legal é que voltamos e agora com um mega estádio, administração saneada e um time bem competitivo.  
Pra desgosto de alguns que se esforçam na carga negativa. 
Aos gozadores do bem, tudo bem, de boa.
Sem complexo de Barcelona e com personalidade própria a gente se sente mais livre e forte. 
Avanti Palestra!

02/05/2015

Palavra boa é palavra líquida

Me dá um abraço, pois é a única coisa falsa deste programa!
Conheci o poema de Viviane Mosé, o qual publico hoje aqui, através do PROVOCAÇÕES, programa da TV Cultura de São Paulo, apresentado por Antônio Abujamra, que a meu ver nos deixou precocemente nesta semana, e dirigido por Gregório Bacic, um grande sujeito que conheci quando passei por esta emissora e que do qual espero agora novas Provocações.  
Aos dois e a equipe meus sinceros reconhecimentos pelo trabalho diferenciado. Sou fã do programa desde o início, há quase quinze anos.
 
Receita para arrancar poemas presos
Viviane Mosé
A maioria das doenças que as pessoas têm são poemas presos.
Abscessos, tumores, nódulos, pedras são palavras calcificadas,Poemas sem vazão.Mesmo cravos pretos, espinhas e cabelo encravado.Prisão de ventre poderia um dia ter sido poema. Mas não.Pessoas às vezes adoecem da razãoDe gostar de palavra presa.Palavra boa é palavra líquida, escorrendo em estado de lágrima.Lágrima é dor derretida. Dor endurecida é tumor.Lágrima é alegria derretida. Alegria endurecida é tumor.Lágrima é raiva derretida. Raiva endurecida é tumor.Lágrima é pessoa derretida. Pessoa endurecida é tumor.Tempo endurecido é tumor. Tempo derretido é poema.

Viviane Mosé é psicóloga e psicanalista. Escreveu e apresentou, em 2005 e 2006, o quadro Ser ou não ser, no Fantástico, onde trazia temas de filosofia para uma linguagem cotidiana. (Youtube)
 

01/05/2015

Deixa que eu conto

A Incapacidade de Ser Verdadeiro
Carlos Drummond de Andrade  
Paulo tinha fama de mentiroso. Um dia chegou em casa dizendo que vira no campo dois dragões da independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas. 
A mãe botou-o de castigo, mas na semana seguinte ele veio contando que caíra no pátio da escola um pedaço de lua, todo cheio de buraquinhos, feito queijo, e ele provou e tinha gosto de queijo. 
Desta vez Paulo não só ficou sem sobremesa como foi proibido de jogar futebol durante quinze dias. 
Quando o menino voltou falando que todas as borboletas da Terra passaram pela chácara de Siá Elpídia e queriam formar um tapete voador para transportá-lo ao sétimo céu, a mãe decidiu levá-lo ao médico. 
Após o exame, o Dr. Epaminondas abanou a cabeça:
- Não há nada a fazer, Dona Coló. Este menino é mesmo um caso de poesia. 

DEIXA QUE EU CONTO
Carlos Drummond de Andrade
 
SP - Editora Ática, 2003

29/04/2015

No imperativo (Ganha Bolachinha)

A doce ilusão da liberdade 
Jacques-Armand Cardon
Deita! 
Dorme! 
Finge de morto! 
Corre para esquerda! 
Agora para direita! 
Balança o rabo! 
Fica triste! 
Faz cara do bobo! 
Isso, muito bom! Ganha bolachinha! 

Morreu! 
Acordou! 
Procurando! 
Dormindo! 
Correndo! 
Morreu de novo! 
Cadê o lobo? Auuuu! 
Muito bom mesmo! Parabéns! Ganha bolachinha!


21/04/2015

A dois passos do Paraiso


Sobra um tempinho? Escapo mesmo. Quilômetros e quilômetros de onde vivo? 
Não! Algumas horinhas, somente. De carro chego rapidinho. 
Cada vez mais acredito que meu lugar é fora do tumulto, da vaidade e das coisas que absorvi ao longo da vida. 
Chego lá uma hora, quando deixar de ser um soldado.
Amplie as fotos, clique nelas e assista melhor.
















Até logo!

15/04/2015

AS FOLHAS SABEM PROCURAR PELO SOL

Imagem do blogueiro intrépido 
De saco cheio dou uma viajada no tempo. Faço questão somente de me lembrar das coisas boas. Do resto, deixo de lado, nem me lembro e nem sei do que se trata. 
É preciso relaxar e como disse o poeta, as folhas sabem procurar pelo sol. (lembrei da frase hoje enquanto dirigia pelo intenso trânsito de São Paulo). 
A natureza nos leva ao sol quando precisamos dele.

Baby 
Você precisa saber da piscina, da margarina, da Carolina, da gasolina. Você precisa saber de mim. 
Baby, baby, eu sei que é assim… Baby, baby, eu sei que é assim. 
Você precisa tomar um sorvete na lanchonete, andar com a gente, me ver de perto, ouvir aquela canção do Roberto. 
Baby, baby, há quanto tempo… Baby, baby, há quanto tempo. 
Você precisa aprender inglês, precisa aprender o que eu sei e o que eu não sei mais… e o que eu não sei mais. 
Não sei, comigo vai tudo azul, contigo vai tudo em paz, vivemos na melhor cidade da América do Sul, da América do Sul. 
Você precisa, você precisa, você precisa. Não sei, leia na minha camisa. 
Baby, baby, I love you… Baby, baby, I love you.  

Panis Et Circenses
Eu quis cantar minha canção iluminada de sol. Soltei os panos sobre os mastros no ar. Soltei os tigres e os leões nos quintais. Mas as pessoas na sala de jantar são ocupadas em nascer e morrer. 
Mandei fazer de puro aço luminoso, um punhal, para matar o meu amor e matei, às cinco horas na avenida central. Mas as pessoas na sala de jantar são ocupadas em nascer e morrer. 
Mandei plantar folhas de sonho no jardim do solar. As folhas sabem procurar pelo sol e as raízes procurar, procurar. 
Mas as pessoas na sala de jantar, essas pessoas na sala de jantar, são as pessoas da sala de jantar. Mas as pessoas na sala de jantar são ocupadas em nascer e morrer.  
Pronto volto agora para 2015 - Back to the Future! Desopilado e só com ideias boas na cabeça.
Caetano Veloso e Gilberto Gil, sem que soubessem, contribuíram para o blog. Obrigado aos dois. Eternamente grato.


12/04/2015

Correntes solitárias, a fé e eu.

Imagem do blogueiro intrépido
Lamento dizer que, pra mim, a manifestação anti Dilma e PT que ocorre neste domingo pelo país, ideia a qual me alinho, me lembra e muito as procissões católicas de Piracaia: 
meia dúzia de gatos-pingados andando pelas ruas da cidade em correntes solitárias, cantarolando coisas incompreensíveis, rogando o metafísico em noites de lua cheia das sextas-feiras frias de outonos de folhas secas caídas ao chão.
Convicto, continuo acreditando que políticos e adeptos não servem para nada, além de me provocarem fortes diarréias. 
O sistema é poderoso, é mais um Deus. 
Tá bom, depois chegou mais gente. 

09/04/2015

Racionais

VOU LOGO DIZENDO: NÃO SE TRATA DE MC's.
Entre os Poderes da República aqui se esconde o verdadeiro perigo.  É daqui que saem os Chefes que controlam os outros dois Poderes.
E tudo meticulosamente tramado e endossado pelo nosso legítimo voto, tudo com nossa aprovação.
Sem querer acabei lendo as anotações de um amigo. Ele esqueceu seu caderninho no banco de trás do meu carro ontem quando lhe dei carona. 
Junto deste estava dobrado um jornal e óbvio no caderno de política, onde se lia a manchete que falava alguma coisa sobre deputados em Brasília que aprovariam coisas contrárias aos direitos dos trabalhadores. 
Esse amigo é leitor de política. Pra mim, acho uma perda de tempo, mas. 
Fiquei chocado com o que li, um desabafo dos mais sérios, não somente por ele, mas pelo que representava.  
Acabei me dando conta que esse amigo estava mesmo era deprimido. E pior, muito pior, além disso, constatei que ele não acreditava mais em Deus.  
Vá-lha-me, Deus, nosso Senhor Jesus Cristo!
Pobre amigo, rezarei muito por ele.  
O desabafo se escancarou da seguinte maneira: 

OS RACIONAIS 
Noto serenidade, coerência e dignidade na vida dos seres irracionais. Vida e morte fluem espontaneamente por este universo. 
Na dos racionais, no entanto, as coisas parecem diferentes. Os vejo tortos, deformados e sem virtudes. 
Me pergunto o motivo de sua existência e da persistência deles no planeta. Me esforço para tentar compreender o que fazem por aqui, mas fico sempre sem respostas. 
Desde quando? Não sei dizer, desde o princípio dos tempos, talvez. 
Provocarão os racionais o final dos tempos? 
Tudo indica que sim. Malditos!
Individualmente eles até aparentam simpatia, inteligência,  sensibilidade e alguns até nos surpreendem com a intensidade dessas características. 
Mas quando se agrupam tornam-se tão terríveis, revelam a verdadeira essência de sua composição. É coisa triste de se ver. Covardes!
Uma espécie a qual se tentou o máximo e se alcançou o mínimo. Uma experiência falha. 
Se alguém ou algo de fato criou deliberadamente os homens e sua racionalidade, esse alguém ou algo errou feio e muito feio, aliás.   
Escondi o caderninho de mim mesmo e se o amigo me perguntar amanhã se eu o encontrei no carro, direi que não. 
Não quero que ele se sinta constrangido por eu saber que ele é um ateu enrustido, acho mais racional assim.


28/03/2015

O que é isso?

As duas meninas de seis anos, sem que ninguém soubesse, invadiram a dependência da casa cujo acesso era rigorosamente controlado pelo avô rabugento. 
Aproveitaram-se da ausência dele pois conheciam bem as regras: o território era muito, muito e muito proibido.
O que será que o vovô guardava no quartinho que ninguém pudesse saber? 
A natureza humana é irremediavelmente curiosa e através das meninas essa afirmação se renovava.
Tomaram a chave que ficava escondida atrás de um vasinho na estante da sala de estar e seguiram para a zona proibida, sorrateiramente.
Acederam a luz do ambiente de não mais de três metros quadrados e percorreram com os olhinhos atentos a prateleira que ficava ao fundo onde estavam os livros e alguns cacarecos. Fixaram a atenção num objeto esquisitão sobre a escrivaninha.
Uma caixa de formato sem-formato que de certo escondia o segredo dos sete-mares em seu interior.
Vamos abrir! Pensaram. Daria para ouvir o pensamento das duas, tamanha a ansiedade.
Apertaram intuitivamente a chavinha da frente do caixote encapado com tecido que lembrava pano de sofá, fazendo com que a tampa se abrisse num clique com som de cloque, como num passe de mágica. 
As crianças adoram mágicas.
O diálogo se deu entre as primas, Alice e Gabi e foi registrado pela câmera de segurança que o avô rabugento instalara no escritório, na surdina, duas semanas antes. 
Ele, definitivamente, não gostava que ninguém mexesse em suas coisas.  
A tampa retirada e deixada de lado revelava a traquitana guardada no caixotão.
Gabi perguntou: 
__ O que é isso? 
__ Não sei, só sei que não podemos mexer. Respondeu Alice. 
__ Gozado, né? Será que é um tablet? A Gabi, sempre mais arrojada nas observações. 
__ Não, acho que não! Deve ser o computador velho do vovô. Tem teclado e tudo, olha… Considerou, Alice, que desde pequena demonstra maior afinidade com as coisas da tecnologia. 
__ Tem até impressora dentro desse tablet, olha o papel… Gabi aponta para a folha. 
__ É mesmo! E só tem uma folha aí. (Alice) 
__ Onde será que liga? (Gabi) 
__ Deve ser aqui numa dessas teclas ...mas não tem Control... (Alice) 
Toc Toc Toc 
__ Olha, tem uma fita vermelha e preta aqui, pra que serve isso?  Gabi, parece mais curiosa. 
Toc Toc Toc 
__ As teclas são duras, né? Difícil de apertar. Alice experimenta uma a uma com olhar atento. 
Toc Toc Toc 
__ A gente afunda a tecla e sai escrito no papel, imprime na hora. Se apertar forte fica melhor.
Gabi escreveu alguma coisa. Muito inteligente ela. As duas são. 
Depois de alguns minutos, acreditando terem encontrando um computador do tempo do onça, que nem ao menos tem chave de liga e desliga, as meninas saíram do quartinho meio que desencantadas. 
Apagaram a luz para que o rabugento não pudesse desconfiar que elas, um dia, invadiram o território proibido. 
__ O vovô é um chatão mesmo! Só gosta de coisa velha!  
A câmera secreta não identificou qual das duas disse tamanha mentira.
Imagens do blogueiro intrépido.

24/03/2015

Mia Couto

O escritor Mia Couto nasceu em Beira, província de Sofala em Moçambique, África.
Foi o primeiro conto que li do autor e fiquei mais do que impressionado. Se tiver um tempinho convido a apreciar.

A Rosa Caramela
Mia Couto

Acendemos paixões no rastilho do próprio coração. O que amamos é sempre chuva, entre o voo da nuvem e a prisão do charco. Afinal, somos caçadores que a si mesmo se azagaiam. No arremesso certeiro vai sempre um pouco de quem dispara.

Dela se sabia quase pouco. Se conhecia assim, corcunda-marreca, desde menina. Lhe chamávamos Rosa Caramela. Era dessas que se põe outro nome. Aquele que tinha, de seu natural, não servia. Rebaptizada, parecia mais a jeito de ser do mundo. Dela nem queríamos aceitar parecenças. Era a Rosa. Subtítulo: a Caramela. E ríamos.

A corcunda era a mistura das raças todas, seu corpo cruzava os muitos continentes. A família se retirara, mal que lhe entregara na vida. Desde então, o recanto dela não tinha onde ser visto. Era um casebre feito de pedra espontânea, sem cálculo nem aprumo. Nele a madeira não ascendera a tábua: restava tronco, pura matéria. Sem cama nem mesa, a marreca a si não se atendia. Comia? Ninguém nunca lhe viu um sustento. Mesmo os olhos lhe eram escassos, dessa magreza de quererem, um dia, ser olhados, com esse redondo cansaço de terem sonhado.

A cara dela era linda, apesar. Excluída do corpo, era até de acender desejos. Mas se às arrecuas, lhe espreitassem inteira, logo se anulava tal lindeza. Nós lhe víamos vagueando nos passeios, com seus passinhos curtos, quase juntos. Nos jardins, ela se entretinha: falava com as estátuas. Das doenças que sofria essa era a pior. Tudo o resto que ela fazia eram coisas de silêncio escondido, ninguém via nem ouvia. Mas palavrear com estátuas, isso não, ninguém podia aceitar. Porque a alma que ela punha nessas conversas chegava mesmo de assustar. Ela queria curar a cicatriz das pedras? Com maternal inclinação, consolava cada estátua:

- Deixa, eu te limpo. Vou tirar esse sujo, é sujo deles.

E passava uma toalha, imundíssima, pelos corpos petrimóveis. Depois, retomava os atalhos, iluminando-se de enquantos, no círculo de cada poste.

De dia lhe esquecíamos a existência. Mas às noites, o luar nos confirmava seu desenho torto. A lua parecia pegar-se à marreca, como moeda em encosto avaro. E ela, frente aos estatuados, cantava de rouca e inumana voz: pedia-lhes que saíssem da pedra. Sobressonhava.

Nos domingos ela se recolhia, ninguém. A velha desaparecia, ciumosa dos que enchiam os jardins, manchando os sossegos do território dela.

De Rosa Caramela, afinal, não se procurava explicação. Só um motivo se contava: certa vez, Rosa ficara de flores na mão, suspensa à entrada da igreja. O noivo, esse que havia, demorou de vir. Demorou tanto que nunca veio. Ele lhe recomendara: não quero cerimónias. Vou eu e tu, só nós ambos. Testemunhas? Só Deus, se estiver vago. E Rosa suplicava:

- Mas, o meu sonho?

Toda a vida ela sonhara a festa. Sonho de brilhos, cortejo e convidados. Só aquele momento era seu, ela rainha, linda de espalhar invejas. Com o longo vestido branco, o véu corrigindo as costas. Lá fora, as mil buzinas. E agora, o noivo lhe negava a fantasia. Se desfez das lágrimas, para que outra coisa serve o verso das mãos? Aceitou. Que fosse como ele queria.

Chegou a hora, passou a hora. Ele nem veio nem chegou. Os curiosos se foram, levando os risos, as zombarias. Ela esperou, esperou. Nunca ninguém esperou tanto um tempo assim. Só ela, Rosa Caramela. Ficou-se no consolo do degrau, a pedra sustentanto o seu universal desencanto.

História que contam. Tem sumo de verdade? O que parece é que nenhum noivo não havia. Ela tirara tudo aquilo de sua ilusão. Inventara-se noiva, Rosita-namorada, Rosa-matrimoniada. Mas se nada não aconteceu, muito foi que lhe doeu o desfecho. Ela se aleijou na razão. Para sarar as ideias, lhe internaram. Levaram-lhe no hospital, nem mais quiseram saber. Rosa não tinha visitas, nunca recebeu remédio de alguma companhia. Ela se condizia sozinha, despovoada. Fez-se irmã das pedras, de tanto nelas se encostar. Paredes, chão, tecto: só a pedra lhe dava tamanho. Rosa se pousava, com a leveza dos apaixonados, sobre os frios soalhos. A pedra, sua gémea.

Quando teve alta, a corcunda saiu à procura de sua alma minéria. Foi então que se enamorou das estátuas, solitárias e compenetradas. Vestia-lhes com ternura e respeito. Dava-lhes de beber, acudia-lhes nos dias de chuva, nos tempos de frio. A estátua dela, a preferida, era a do pequeno jardim, frente à nossa casa. Era monumento de um colonial, nem o nome restava legível. Rosa desperdiçava as horas na contemplação do busto. Amor sem correspondência: o estatuado permanecia sempre distante, sem dignar atenção à corcovada.

Da nossa varanda lhe víamos, nós, sob o zinco, em nossa casa de madeira. Meu pai, sobretudo, lhe via. Calava-se em si, todo. Era a loucura da corcunda que fazia voar nossos juízos? O meu tio brincava, para salvar o nosso estado:

- Ela é como o escorpião, leva o veneno nas costas.

Dividíamos os risos. Todos, excepto meu pai. Sobejava intacto, grave.

- Ninguém vê o cansaço dela, vocês. Sempre a carregar as costas nas costas.

Meu pai se afligia muito dos cansaços alheios. Ele, em si, não se dava a fatigar. Sentava-se. Servia-se dos muitos sossegos da vida. Meu tio, homem de expedientes, lhe avisava:

- Mano Juca, desarasca lá uma maneira de viver.

Meu pai nem respondia. Parecia mesmo que ele mais se tornava encostadiço, cúmplice da velha cadeira. Nosso tio tinha razão: ele carecia de ocupação salariável. O único despacho de seu fazer era alugar os próprios sapatos. Domingo, chegavam os do clube dele, paravam a caminho do futebol.

- Juca, vimos por causa os sapatos.

Ele acenava, lentíssimo.

- Já sabem o contrato: levam e, depois, quando regressarem, contam como foi o jogo.

E inclinava-se para tirar os sapatos debaixo da cadeira. Baixava-se com tanto esforço que parecia estar a apanhar o próprio chão. Subia o par de sapatos e olhava-lhes em fingida despedida:

- Custa-me.

Só por causa do médico é que ele ficava. Proibiram-lhe os excessos do coração, pressas no sangue. – Porcaria de coração.

Batia no peito para castigar o órgão. E voltava à conversa com o calçado:

- Vejam lá, vocês, sapatinhos: hora certa, regressam de volta.

E recebia, adiantado, os dinheiros. Ficava por muito gesto a contar as notas. Era como se lesse um gordo livro, desses que gostam mais dos dedos que dos olhos.

Minha mãe: era ela que metia os pés na vida. Muito cedo saía, rumo dela. Chegava ao bazar, a manhã ainda era pequena. O mundo transparecia, em estreia solar. A mãe arrumava a banca antes das outras vendedeiras. Entre couves empilhadas, se via a cara dela, gorda de tristes silêncios. Ali se sentava, ela e o corpo dela. Na luta pela vida, a mamã nos fugia. Chegava e partia no escuro. À noite, lhe escutávamos, ralhando com a preguiça do pai.

- Juca, você pensa a vida? – Penso, até muito. – Sentado?

Meu pai se poupava nas respostas. Ela, só ela, lastimava:

- Eu, sozinha, no serviço dentro e fora.

Aos poucos, as vozes se apagavam no corredor. De minha mãe ainda sobravam suspiros, desmaios da sua esperança. Mas nós não dávamos cuba a meu pai, Ele era um homem bom. Tão bom que nunca tinha razão.

E assim, em nosso pequeno bairro, a vida se resumia. Até que, um dia, nos chegou a notícia: a Rosa Caramela tinha sido presa. Seu único delito: venerar um colonialista. O chefe das milícias atribuiu a sentença: saudosismo do passado. A loucura da corcunda escondia outras, políticas razões. Assim falou o comandante.
Não fora isso, que outro motivo teria ela para se opor, com violência e corpo, ao derrube da estátua? Sim, porque o monumento era um pé do passado rasteirando o presente. Urgia a circuncisão da estátua para respeito da nação.

Do modo que levaram a velha Rosa, para cura de alegadas mentalidades. Só então, na ausência dela, vimos o quanto ela compunha a nossa paisagem.

Ficamos tempos sem escutar suas notícias. Até que, certa tarde, nosso tio rasgou os silêncios. Ele vinha do cemitério, chegado do enterro de Jawane, o enfermeiro. Subiu as pequenas escadas da varanda e interrompeu o descanso de meu pai. Coçando as pernas, o meu velhote piscou os olhos, calculando a luz:

- Então, trouxeste os sapatos?

O tio não respondeu logo. Estava ocupado a servir-se da sombra, curando-se da transpiração. Soprou nos próprios lábios, cansado. No seu rosto eu vi aquele alívio de quem regressa de um enterro.

- Estão aqui, novinhos. Eh pá, Juca, me fizeram jeito esses sapatos pretos!

Procurou nos bolsos mas o dinheiro, que sempre tem modos rápidos ao entrar, demorou a sair. Meu pai lhe emendou o gesto:

- A você não aluguei. Somos da família, calçamos juntos.

O tio se sentou. Puxou da garrafa de cerveja e encheu um copo grande. Depois, com ciência, pegou numa colher de pau e retirou a espuma para outro copo. Meu pai serviu-se desse copo, só com espuma. Proibido nos líquidos, o velho se dedicava só nos espumantes.

- É leve, a espuminha. O coração nem nota a passagem dela.

Se consolava, olhos em riste como se alongasse o pensamento. Não passava de fingimento aquele afundar-se em si.

- Estava cheio o enterro?

Enquanto desamarrava os sapatos, meu tio explicou a enchente, multidões pisando os canteiros, todos a despedirem do enfermeiro, coitado, também ele se morreu.

- Mas matou-se mesmo?

- Sim, o gajo se pendurou. Encontraram-lhe já estava duro, parecia gomadinho na corda.

- Mas matou-se por qual razão?

- Não sei lá. Dizem foi por motivo de mulheres. Calaram-se os dois, sorvendo os copos. O que mais lhes doía não era o facto mas o motivo.

- Morrer assim? Mais vale falecer.

Meu velho recebeu os sapatos e inspeccionou-lhes com desconfiança:

- Esta terra vem de lá?

- É onde, esse lá?

- Pergunto se vem do cemitério. – Talvez vem.

- Então vai lá limpar, não quero poeira dos mortos aqui.

Meu tio desceu as escadas e sentou-se no último degrau, escovando as solas. No enquanto, foi contando. A cerimónia decorria-se, o padre executava as rezas, abastecendo as almas. De repente, o que sucede? Aparece a Rosa Caramela, vestida de máximo luto.

- A Rosa já saiu da prisão? – perguntou, atónito, o meu pai.

Sim, saíra. Numa inspecção à cadeia, lhe deram amnistia. Ela era louca, não tinha crime mais grave. Meu pai insistia, admirado:

- Mas ela, no cemitério?

O tio prosseguiu o relato. A Rosa, por baixo das costas, toda de negro. Nem um corvo, Juca. Foi entrando, com modos de coveira, espreitando as sepulturas. Parecia escolher o buraco dela. No cemitério, você sabe, Juca, lá ninguém demora a visitar as covas. Passamos depressa. Só essa corcunda, a gaja…

- Conta o resto – cortou o meu pai.

Seguiu-se a narração: a Rosa, ali, no meio de todos, começou a cantar. Com educado espanto, os presentes a fixavam. O padre mantinha a oração mas ninguém já lhe ouvia. Foi então que a marreca começou a despir.

- Mentira, mano.

Fé de Cristo, Juca, me desçam duas mil facas. Despiu. Foi tirando os panos, com mais vagar que esse calor de hoje. Ninguém ria, ninguém tossia, ninguém nada. Já nua, esroupada, ela se chegou junto à campa do Jawane. Encimou os braços, lançou as roupas dela na cova. A multidão receou a visão, recuou uns passos. A Rosa, então, rezou:

- Leva essas roupas, Jawane, te vão fazer falta. Porque tu vais ser pedra, como os outros.
Olhando os presentes, ela ergueu a voz, parecia maior que uma criatura:

- E agora: posso gostar?

Os presentes recuaram, só se escutava a voz da poeira.

- Hein? Deste morto posso gostar! Já não é dos tempos. Ou deste também sou proibida?

O meu pai deixou a cadeira, parecia quase ofendido.

- Falou assim, a Rosa?

- Autêntico.

E o tio, já predispronto, imitava a corcunda, seu corpo vesgo: e este, posso-lhe amar? Mas o meu velhote se escapou a ouvir.

- Cala-te, não quero ouvir mais.

Brusco, ele largou o copo pelos ares. Queria despejar a espuma mas, de injusto lapso, saiu-lhe o copo todo da mão. Como se pedisse desculpa, meu tio foi apanhando os vidrinhos, tombados de costas pelo quintal.
Nessa noite, eu desconsegui de dormir. Saí, sentei a insónia no jardim da frente. Olhei a estátua, estava fora do pedestal. O colono tinha as barbas pelo chão, parecia que era ele mesmo quem tinha descido, por soma de grandes cansaços. Tinham arrancado o monumento mas esqueceram de o retirar, a obra requeria acabamentos. Senti quase pena do barbudo, sujo das pombas, encharcado de poeira. Me acendi, vindo ao juízo: estou como a Rosa, pondo sentimento nos pedregulhos? Foi então que vi a própria, a Caramela, parecia chamada pelos meus conjuros. Fiquei quase gelado, imovente. Queria fugir, minhas pernas se negavam. Estremeci: eu me convertia em estátua, virando assunto das paixões da marreca? Horror, me fugisse a boca para sempre. Mas, não. A Rosa não parou no jardim. Atravessou a estrada e chegou-se às escadinhas de nossa casa. Baixou-se nos degraus, limpou deles o luar. Suas coisas se pousaram num suspiro. Depois, ela se entartarugou, aprontando-se, quem sabe, ao sono. Ou fosse de sua intenção apenas a tristeza.Porque lhe escutei chorar, num murmúrio de águas escuras. A corcunda se derramava, parecia era vez dela se estatuar. Me infindei, nessa visagem.

Foi, então. Meu pai, em apuros de silêncio, abriu a porta da varanda. Lento, se aproximou da corcunda. Por instantes, ficou debruçado sobre a mulher. Depois, movendo a mão como se fosse um gesto só sonhado, lhe tocou os cabelos. Rosa nem se esboçava, a princípio. Mas, depois, foi saindo de si, rosto na metade da luz. Olharam-se os dois, ganhando beleza. Ele, então, sussurrou:

- Não chora, Rosa.

Eu quase não ouvia, o coração me chegava aos ouvidos. Me aproximei, sempre por trás do escuro. Meu pai lhe falava ainda, aquela sua voz nem eu lhe havia nunca ouvido.

- Sou eu, Rosa. Não lembra?

Eu estava no meio das buganvílias, seus picos me rasgavam. Nem sentia. O assombro me espetava mais que os ramos. As mãos de meu pai se afundavam no cabelo da corcunda, pareciam gente, aquelas mãos, pareciam gente se afogando.

- Sou eu, Juca. O seu noivo, não lembra?

Aos poucos, Rosa Caramela se irrealizou. Ela nunca tanto existira, nenhuma estátua lhe merecera tantos olhos. Meigando ainda mais a voz, meu pai lhe chamou:

- Vamos, Rosa.

Sem querer eu já saíra das buganvílias. Eles me podiam ver, nem me fazia nenhum estorvo. Parecia a Lua até atiçou seu brilho quando a corcunda se ergueu.

- Vamos, Rosa. Pega suas coisas, vamos embora. E foram-se os dois, noite adentro.

Mia Couto in “Cada homem é uma raça


"A mulher corcunda (também conhecido como Hunchback II)" Alexej Georgewitsch Von Jawlensky - óleo sobre painel - 54 x 49 cm - 1911 - (Private collection)

22/03/2015

Futuca a Tuia

Da série Caipiragem dos Domingos, lá vai uma poesia da terra.

 ARRUMAÇÃO
Eleomar Figueira de Melo
Josefina sai cá fora e vem vê
Olha os forro ramiado vai chuvê
Vai trimina riduzi toda criação
Das bandas de lá do ri gavião
Chiquera pra cá já ronca o truvão 
Futuca a tuia, pega o catadô
Vamo planta feijão no pó
Futuca a tuia, pega o catadô
Vamo planta feijão no pó 
Mãe purdença inda num cuieu o ai
O ai roxo dessa lavora tardã
Diligença pega panicum balai
Vai cum tua irmã, vai num pulo só
Vai cuiê o ai, o ai da tua avó

Lua nova sussarana vai passá
Sêda branca, na passada ela levô
Ponta d´unha, lua fina risca o céu
A onça prisunha, a cara de réu
O pai do chiquêro a gata comeu
Foi um trovejo c´ua zagaia só
Foi tanto sangue que dá dó

Os cigano já subiro bêra ri
É só danos, todo ano nunca vi
Paciênca, já num guento as pirsiguição
Já só caco véi nesse meu sertão
Tudo que juntei foi só pra ladrão