08/10/2011

A multa.


Obra de Julianna De Mello 

Final de domingo. Onze e meia da noite e estou com fome. Freio o carro antes da faixa de pedestre e aguardo calmamente o farol vermelho se abrir no cruzamento da avenida Rangel Pestana esquina com uma rua que não sei o nome - bem próximo à Praça da Sé no centro velho de São Paulo. 
A voz suave da locutora da rádio falava alguma coisa sobre Brasília. Não dava tanta atenção a não ser ao fato de que em Brasília, num domingo, pudesse acontecer alguma coisa envolvendo participação de políticos. A voz da locutora mais me servia de companhia.
Olhava para os lados para frente e retrovisor. Espelho direito e esquerdo. Meu carro ali era o único e estava responsavelmente parado no cruzamento que durante os dias da semana  têm tráfego intenso. 
Nenhum veículo atravessava a tal da rua. 

Deviam liberar faróis aos domingos, após às onze e meia - pensei.
Uma mulher aparentando vinte e poucos anos e relativamente bem vestida, surgindo do nada se aproximou. Com passos determinados caminhou em minha direção, chegando inclinanou-se e bateu no vidro lateral com certa força me olhando profundamente. Ouvi o toc toc toc que ressoou como um estrondo dentro do carro.
Ela estendeu a mão esquerda em concha, mantendo a direita na altura da cintura sob o casado vermelho bem recortado que parecia ser de grife. 
Na fração de tempo do momento em que a percebi até a sua chegada, notei que a elegante pedinte trajava um jeans claro, justo, delineando o corpo de certa forma atraente e calçava um par de tênis branco que amarelava sob o efeito da iluminação pública. Os cabelos castanhos claros, quase loiros e levemente ondulados caiam-lhe sob o rosto magro de bom traçado e a pele me parecia tenra. Os dentes perfeitamente alinhados, branquinhos, mostravam que um dia conheceram tratamentos mais refinados. Não me pareceram postiços. 
Essas coisas que notamos do nada em nosso dia a dia que passam aos relances e concluímos, precipitadamente, sem sentido algum.
__ O senhor pode me ajudar moço? Por favor! 
Acho que foi isso que ela disse. A interpretação teve colaboração de leitura labial.
Abaixo o vidro gentilmente e pego umas moedas no console logo à frente do câmbio - lugar destinado ao porta copos.
__ Bem, querida. Só tenho isso agora. Me desculpe.
Procurei ser gentil. Mesmo apreensivo, supondo que talvez, finalmente, estaria diante de um possível assalto - até então me gabava do recorde entre os paulistanos de nunca, sequer, ter sofrido ameaça dessa espécie de deliquência. Apostei na imagem da serenidade cortês, acreditando assim, ter alguma chance de escape da situação e figura que aceleravam a minha adrenalina. Passei para para a mão esquerda dela umas quatro ou cinco moedas que provavelmente somavam pouco mais de um real.
__ Só isso moço?  Perguntou movimentando a mão direita que se escondia sob o casaco. 
__ Só isso, meu bem. Sinto muito. Da próxima vez te arrumo mais - passo por aqui todas as noites e amanhã você terá bem mais, prometo.
Respondi com voz firme e bem dirigida.
A mão direita dela sob o casaco movimentou-se nervosamente. O olhar profundo quase submisso se transformou. As sombrancelhas  arquearam-se e se aproximaram entre si sob o nariz delicadamente fino. Os lábios carnudos pareceram mais finos. Seu rosto lembrou uma ave de rapina diante do  ataque certeiro.
__ Olha aqui, você não está entendo. Me passa tudo o que você tem ai. Rapidinho, vai, vai. Grana, celular... tudo.
Jogou as moedas na minha cara. Meu óculos saiu do lugar.
__ Fique calma. Vou te passar minha carteira que está no bolso de trás.
__ Vai logo, porra.
Minhas mãos tremiam sob o volante. Olhei para o farol que permanecia, irritantemente vermelho. 
Dois, três, quatro segundos - pareciam uma eternidade.
A voz suave da locutora do rádio dizia alguma coisa que nem entendia direito.
Pensei - vou sair em disparada. Não vou dar nada pra essa mulher. Não vou ser assaltado. Não. É melhor eu entregar o que tenho e vou embora numa boa. Será que é arma mesmo que ela tem ai?
Incrível, tudo vem à cabeça. O coração bate acelerado, o suor corre pelas mãos que ficam frias, os braços, o corpo, tudo fica gelado. A gente treme até o último fio de cabelo.
__ Cadê o celular, tio?
A voz vinha de longe, muito longe. O som do rádio me parecia mais alto.
Cinco, seis, sete, oito segundos. Uma eternidade.
Me inclinei dissimulando buscar a carteira no bolso da calça. Olhei a mão sob o casaco vermelho e pressenti um estrondo que iria sair de algo pontiagudo voltado para mim se não obedecesse a loira acastanhada. 
Respirei fundo e do nada, impulsivamente, como se não fosse eu mesmo, uma outra pessoa, não sei quem e nem como, levei a mão ao câmbio, engatei a primeira marcha e fiz o pé direito pisar fundo no acelerador, tal e qual um corredor de Fórmula 1 faz no momento da largada.
Saí de lá em disparada, protegendo o corpo de um possível tiro cuja bala, nada doce, se me atingisse, atravessaria meus miolos esfacelado-os e misturado os pedaços dele ao sangue que sujaria todo meu carro que, aliás, também é vermelho.
Dois quilômetros à frente, depois de ter passado por outros tantos faróis vermelhos me restabeleci. E perplexo com a experiência cheguei em casa mais tarde com as pernas ainda bambas, mas nada contei aos meus.
O farol vermelho no momento da fuga fez com que a câmera do radar disparasse um flash que levaria dias depois eu receber do Departamento Estadual de Trânsito um aviso de cobrança. Um envelope lacrado pelas bordas com meu nome e endereço estampados em caixa alta na capa. Dentro o formulário indicava o flagrante do crime, contendo o dia, a hora, placa e outros tantos números. Uma foto em preto e branco, ridícula, de um carro - o meu, conduzido por um motorista relapso, provavelmente alcoolizado que quase atropelara uma pedestre, fotografada bem ao lado do veículo - pensaria um avaliador mal informado. 
Multa grave de cento e tantos reais e sete pontos na carteira.
A mesma câmera não registrou a aflição, a sensação de impotência e o risco que correu o motorista. Não registrou a tentativa de assalto que se tivesse acontecido teria sido talvez, mais honesto. O institucional, nem recorrendo. Resignado paguei a tal conta.
A pedinte, uma linda mulher, deve ter se dado melhor em outras oportunidades. 
De certa forma me dei bem também, ainda não sofri assalto. Me refiro esses que acontecem todos os dias.

Os regulamentados, não escapamos. Desses não tem jeito mesmo. As instituições são bem organizadas, muito eficientes na cobrança e cada vez mais se parecem com as do primeiro mundo.
São chamadas de Caracú. Elas entram com a cara e nós entramos com o resto.

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