17/01/2016

A Prosa dos Diferentes

LIBERDADE E IGUALDADE SÃO COISAS RELATIVAS
Imagem - Meu Blog
Num mês de agosto qualquer, num final de tarde específico.
A prosa interrompeu o silêncio que há muito irritava o interlocutor. O vizinho se surpreendeu com o chamado e uma simples pergunta foi o suficiente para alterar a percepção de ambos sobre si mesmos.
__ Eu tenho interruptor e tomada na parede de casa. Você tem na sua? 
Um minuto e meio depois o vizinho respondeu.  
__ Não, eu não tenho interruptor e nem tomada na minha casa e sinceramente, nem sei do que você está falando, pois não me preocupo com certas coisas. Tenho algo mais interessante aqui, uma janela. Uma janela grande, larga e vistosa que possibilita eu assistir a rua na sua plenitude e através dela fico sabendo de tudo que acontece no mundo e a qualquer hora do dia ou da noite ela está disponível para mim. Considero um privilégio ter uma grande janela em casa. Você não acha?

__ Puxa, que legal! Sem dúvida é um privilégio ter uma janela em casa. Mas eu tenho uma também, na verdade, contemplo duas janelas ao mesmo tempo, uma é esta pela qual estamos nos falando e a outra, mais ao fundo, tem uma luz bastante intensa. Nesta eu observo você diariamente olhando por ela para algum lugar. Não sabia que você assistia a rua, aliás, nem imaginava que existia uma rua.

__ Meu caro interlocutor, também tenho uma segunda janela, basta eu girar o pescoço para vê-la e não faço nenhum esforço para tanto, pois ela está imediatamente às minhas costas. É uma janela pequena, sem graça, com uma grade de ferro que merece cuidados e é por ela que vejo você preso. Eu, como um ser livre lamento pela clausura que lhe foi imposta, deve ser muito triste ser um prisioneiro. Por favor, se precisar de alguma coisa, não hesite, afinal, amigos são para essas coisas.

__ Caramba, obrigado pela solidariedade, mas… eu sempre achei que você é quem estava trancafiado. Pela minha janela era você quem estava atrás da grade e não eu. Sempre de costas para mim, hipnotizado pela luz intensa. Calado, pensativo, triste, distante. Imaginava a dor da solidão que sentia.

A prosa pareceu encerrar-se. Permaneceram quietos por duas horas e quarenta e três minutos até ela ser retomada.

__ Amigo, você despertou uma dúvida em mim. Estava aqui pensando e considerando a possibilidade de ambos estarmos enjaulados, nenhum de nós parece estar livre. Embora em lados diferentes, você com um interruptor e tomada e eu com uma grande janela que dá para a rua, acho bem provável estarmos na mesma situação, isto é, ambos, absolutamente presos.

Após uma pequena pausa ele virou-se para o amigo e perguntou:

__ E como você foi parar aí. 

__ Eu não sei, eu não tenho a menor ideia, eu acreditava que aqui era tudo que existia no mundo ou quase tudo, considerando o seu lado. Nada mais tenho na memória, nada além das paredes encardidas, do interruptor, da tomada que também não tenho a menor ideia para que servem. Acho que perguntei somente para quebrar o gelo, puxar assunto com você, passar o tempo que insiste em ser lento. 

Franziu a testa e devolveu ao vizinho duas outras perguntas: 

__ Mas me diga uma coisa, fiquei intrigado com essa história de rua. O que é rua, o que acontece nela de tão interessante pra você ficar olhando pra ela? 
__ Meu amigo, já que você não dispõe de uma grande janela pode ser justo eu descrever o que vejo pela minha e quem sabe assim eu sacie sua curiosidade, mesmo entendendo agora que isso pode lhe trazer novas angústias.

Encheu os pulmões com uma boa quantidade de ar e iniciou. 

__ A rua é uma coisa diferente. Ela é um caminho de terra fofa e relativamente longa. É sinuosa e ao mesmo tempo reta. A rua tem adornos nas laterais, calçadas por onde caminham as pessoas, gatos e cachorros. As calçadas são de pedras brancas com algumas de cores opacas e estas misturam-se às primeiras formando mosaicos desconexos, mas que se harmonizam para os que os veem de longe. Tem também postes, estes são troncos de árvores lapidados que sustentam fios esticados pelo alto quase encostando-se ao céu. Nos fios descansam os animaizinhos de bicos e penas após os endiabrados malabarismos aéreos que fazem. Sim, eles voam. 

Fez uma pausa quando compreendeu que deveria explicar melhor o que era céu. 

__ O céu, meu caro amigo, é aquilo que fica acima de tudo, nada está acima dele. O céu é o limite, uma espécie de um grande forro. Ele é de um azul que vai do mais claro, quando a luz quente do sol está presente, até um bastante denso, quando ela se vai. 

E continuou.

__ Espalhadas pelo céu estão as nuvens. As nuvens são mágicas, pois surgem e somem sem que ninguém perceba como fazem isso. Imagine fumacinhas brancas, disformes se movimentando sem parar, como algodões-doces animados que brincam de se transformarem por puro prazer, o tempo todo. Assim são as nuvens. 
No entanto, amigo, quando elas se acumulam o céu fica feio, muito feio. Ouvem-se trovoadas e veem-se relâmpagos por todo canto. Os trovões são barulhentos e têm a única serventia de nos assustar, nos alertar para possíveis tempestades, nada mais. Porém, os relâmpagos são perigosos, esses são traiçoeiros e explosivos. Desenham serpentes nervosas e aterrorizantes no céu e fazem parecer que ele está trincando. Concluí depois de muito tempo que o céu era vidro. 

Fez uma pausa, olhou distante e seguiu com a narrativa. 

__ Além dos trovões e relâmpagos, as nuvens acumuladas assopram ventos fortes que levam tudo pelos ares. Acredite, coisas pesadas saem do chão. Os ventos assobiam músicas de filme de terror e com eles chegam as chuvas. Chuva é uma sequência enorme de gotas de água gelada que caem lá de cima ininterruptamente e acertam a gente com mira a laser. Elas têm pequenas lâminas afiadas que cortam a pele. Não sai sangue, mas o impacto delas em nosso corpo faz doer e muito. Sei disso porque já me aconteceu de algumas gotas respingarem no rosto enquanto eu as assistia pela janela. 
Com tanta água que cai do céu a poeira da rua se transforma em lamaçal e fazem com que as pessoas corram pelas calçadas. Na rua trafegam as carruagens e as bicicletas e estas transportam outras pessoas. 

Mais uma pausa.

__ Bonito mesmo é ver a luz quente se pôr no horizonte, apagando-se lentamente para deixar entrar o azul mais denso, quando, então, chega a bola branca iluminando a noite. Às vezes inteira, maior ou menor e outras, em gomos da esquerda ou da direita. E complementando a formosura do céu noturno despontam milhares de pontinhos de luz feitos brilhantes da Antuérpia, cravejando o firmamento como uma obra de um artista desvairado. O céu que é de vidro se transforma em universo e se revela na imensidão.
Pausa para uma respirada curta. 
__ Penso que existam outras ruas pois noto ao longe uma saidinha à direita que bem poderia ser uma nova rua e esta, possivelmente deva também ter calçadas para as pessoas, gatos e cachorros trafegarem e quem sabe levando ainda para uma outra rua que por sua vez encontraria outras tantas pela frente, todas com calçadas, pessoas, gatos e cachorros. Pelo visto, o mundo é feito de ruas, meu caro amigo interlocutor. 
Este ouviu tudo calado e perplexo e perguntas transbordavam da caixola, ininterruptas como a água da chuva. Uma delas, a que mais o incomodou:

__ E pessoas, o que são pessoas? Se parecem com a gente?

__ Não, amigo, não se parecem com a gente, pelo menos comigo. Elas são esquisitas, andam sobre duas patas, pois as duas da frente não alcançam o chão, elas ficam na parte superior dos seus corpos. Nas pontas dessas patas não vejo cascos e sim formas agudas. As pessoas são cabisbaixas, mostram os dentes umas às outras de vez em quando e geralmente não se olham de frente, preferem-se pelas costas. Na verdade amigo, espero que não se zangue com minha observação, elas se parecem muito com você.

Pausa.

__ Por que este olhar arrogante agora, meu amigo?


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