22/12/2015

SEM FÉ

Nessa época do ano ficamos mais atentos com nós mesmos, até as convicções mais secretas são visitadas.
Imagem - Google
Qual parte teria a imagem do Pai? 
Sei não, desde que passei a reparar melhor as estrelas, quando fico aflito ainda me pego procurando ajuda dos espíritos. 
A ideia de um Deus no comando deixou de fazer sentido para mim há algum tempo e garanto que não é nada fácil viver sem fé num criador. A convicção, além de intuída precisa ser construída e isso toma tempo. 
Não me tornei um monstro mentecapto depois que perdi a crença e nem tampouco me prestei a caridade exagerada como um padre Teresa de Calcutá. Continuo sendo exatamente a mesma pessoa que sempre fui, um absoluto comum. 
Cresci numa família de imigrantes vindos de uma Europa arruinada pelas guerras constantes e ainda à beira de outras duas que se tornariam mundiais. Chegaram com a perspectiva da oportunidade que o novo mundo oferecia a eles. O chamado Brasile dall'America, non da New York, da San Paolo, os viu desembarcando sujos e famintos, mas dispostos a superar as humilhações que todo imigrante sofre, principalmente quando chega a um novo porto. 
Estes trouxeram histórias, esperanças e muita vontade de ganhar dinheiro (embora sem muito talento para tanto) e conquistar a liberdade para serem felizes por aqui, misturando-se aos nativos sem abrir mão de suas raízes. 
Os imigrantes em geral chegam ansiosos pelos próprios negócios, pelas próprias terras para se estabelecerem nelas construindo pedacinhos de seus países em cada novo canto do mundo. La vita è bella!
Cristãos, tuttavia, non molto, cuja preocupação era mangiare abastança e passar para os filhos, come viver com le cose come sono. A máxima era: as coisas são como são e não adianta chorar, a gente é que tem que se adaptar à vida e não ela à nós. Depois de meia garrafa de vinho e umas tantas berinjelas a filosofia rolava solta.
Não guardar rancor por muito tempo, era outra, deve-se resolver il problema quanto prima e jamais, por nada neste mundo, la madre de Dio, se acovardar. 
Accasciarsi! (mordendo o dedo da mão direita com raiva) 
Mistura difícil para a compreensão de uma criança.
Seguindo a ordem: guardar somente o que é seu, não aceitar presentes sem o consentimento dos pais. Bastava um olhar e pronto, ou recebia-se um sim aprovador ou um não cem por cento ameaçador. 
Respeitar os avós, ainda mais se estes estiverem mortos ou perto disso. Depois de morto todo mundo vira santo.  "Dopo la morte ognuno diventa santa"
Eu entendia que as coisas iam bem quando tínhamos o vinho para beber, o macarrão e um pedaço de carne para comer.  
Nesse cenário ensinavam que todos os homens eram iguais perante a Deus e que todos nós éramos filhos de um mesmo Pai, portanto, éramos todos irmãos.  
Na minha cabeça Adolph Hitler, os nazistas, o bandido da luz vermelha e os batedores de carteira, famosos na época, eram meus irmãos. 
Lembravam que o Natal era para se comemorar o nascimento de Jesus e que este dedicou sua vida para nos salvar a ponto de ser crucificado por pessoas más, (estes seriam meus irmãos também?), deixando o legado da fraternidade, da paz e da esperança aos homens, mas somente aos "de boa vontade". Me perguntava:  e aos demais, o que Jesus deixou? Teria sido este um pequeno deslize do Homem de Nazaré?  Uma segregação camuflada?  Teria sido Ele concebido pelo poder do Espírito Santo com uma mãe virgem e casada? E o marido, no mínimo ele devia ter estranhado o fato da virgindade e da concepção extra conjugal? Pensava eu. Mas segundo a fé, foi assim, pois com Deus tudo pode.
A importância da virgindade na história da civilização remonta sabe-se lá desde quando.  Realmente foi um pouco difícil compreender a obra como um todo, simplesmente para mim as coisas não se encaixavam. 
Então, vinha o "milagre da fé" preenchendo o campo das perguntas sem respostas. Sobravam os afagos à alma depois da fé alcançada. Que alívio!  
Seria esse o motivo da fé, solidão e carência?
Ouvia dos mais velhos para não pensar no assunto, eu tinha que somente acreditar e ponto final. 
__ Deus sabe o que você está pensando moleque e olhe lá o que vai botar nessa cabeça, heim! 
Era desse jeito que Deus chegava até a gente, tinha que se acreditar nele e pronto. Mas teria que ser com fé, com muita fé, pois somente assim se alcançaria o reino de Dele. Acho que é alguma coisa parecida com os homens-bomba, aqueles que se explodem e matam outros por psicopatia e de recompensa ganham sete virgens nos céus. 
Aqui entre nós, abrindo um parênteses e que não nos leiam, pois os fundamentalistas são meio nervosos, penso que eles chegam lá céu após os ataques, estrebuchados, aos pedaços e ficam sem ter como desvirginar as mocinhas inocentes. Acho que deve ser sempre as mesmas sete na barganha de Alá com esses caras.
Retomando, muitas vezes ia dormir pensando na razão de Deus não querer aparecer de verdade, bem na nossa frente, cara-a-cara, ao menos para os que precisam vê-lo para se certificarem de sua existência. Seríamos considerados espiritualmente inferiores? Não teria problema algum pra mim, eu toparia. Tenho certeza que tudo se esclareceria definitivamente e a vida seguiria ainda mais bela com o mistério revelado. 
Por que as coisas não podem ser mais fáceis na vida? Por que acreditar somente pela fé quando a situação é caótica? Por que ter medo de fantasmas? Por que segregamos pessoas pela cor da pele, crenças ou nacionalidades? Por que existem diferenças? Por que uns têm comida e outros não? Uns matam e outros vivem e deixam viver. Uns trabalham, outros não. Uns têm saúde e outros não. Por que, por que e por que? Um monte de porquês sem respostas. Seria essa a razão de existir a fé? Quando não tem saída a fé resolve?
Comigo o serviço não foi no capricho, não. Além de eu ter avaliado outras possibilidades existenciais ao longo de pouco mais de meio século, percebi que havia chegado a hora da mudança.  
O ato simbólico, a pedra fundamental para o grito de independência foi o de retirar do pescoço a correntinha de ouro com o crucifixo onde se via a imagem de Jesus. A corrente que carreguei por anos a fio, motivo do cacoete das horas de pressão.  Não foi fácil como parecia ser de início, confesso que me senti o próprio Judas Iscariotes, um traidor da pior espécie, um rato de esgoto, uma barata nojenta. Ela representava muito para mim, toda a minha história, meus valores que remetiam aos parentes e amigos amados que se foram. Senti a dor da dúvida e do remorso por dias seguidos, talvez meses. 
Mas, com sacrifício ultrapassei a fase, consegui me libertar da fé, da maledeta que me enfiaram goela abaixo, do Deus que pune e ama ao mesmo tempo, como fazem os sádicos. Até descobrir que nunca acreditei nele de verdade, acho que vomitava a fé que me ensinavam durante o dia, às noites, enquanto eu dormia. 
Esclareço que optei por ser ateu não por mágoa ou por qualquer outro tipo de frustração e não foi num momento específico da vida, num basta nervoso qualquer, num da noite para o dia.  
Não! Foi resultado de um processo maturado, fermentado e curado durante anos. Fui constatando com o tempo que a fé que eu tinha era exatamente a fé de não ter fé. Acho que me faltava coragem para admitir. Me sentia vigiado por milhares de olhos reprovadores, centenas e centenas de dedos em riste que me cobravam, me xingavam de herege, de bruxo e de filho do capeta.
A vida oferece coisas belas e é bom estar vivo e bem vivo. Quase fui, tempos atrás, mas estou ainda por aqui e bem vivinho. 
O planeta onde moramos é simplesmente maravilhoso, jamais poderia ter sido construído em apenas seis dias para que no sétimo alguém pudesse somente contemplá-lo. 
O que conhecemos desse ínfimo corpo celeste esquecido na imensidão do universo é que ele formou-se durante bilhões de anos e de maneira espontânea, assim como tudo, com química interagindo com física na mais perfeita harmonia, assim dando surgimento aos minerais, aos gases, ao oxigênio que abunda a atmosfera possibilitando a vida na terra. Vida marinha, terrestre, botânica e animal. A natureza se manifesta plena e se fosse orgulhosa pleitearia sem sombra de dúvidas a coroa de uma Deusa. Mas não, ela é humilde e nos pede somente a atenção. 
Me parece que nesse contexto não se enquadram os humanos ou parte significativa da espécie. Tem coisa errada nessa existência e não sei dizer exatamente o que.  
A fé nos diz que fomos criados à imagem de Deus. 
Mas enquanto porções consideráveis de homens e mulheres se mostram admiravelmente bondosos, sincronizados com a natureza como partes integrantes dela, outras estão exatamente em posições opostas. Para o contraste de caráter entre as partes da mesma espécie não se encontram explicações coerentes e possivelmente essa característica não seja notada em qualquer outra espécie da vida no planeta, somente entre os humanos, os únicos dotados de inteligência, segundo seus próprios valores. 
Dizem que é coisa do Demo, intervenção do Mal e até possível resultado de experiências mal fadadas de extras-terrestres num passado distante, que após virem o que fizeram nos largaram à própria sorte. A espécie, ávida por sexo se procriou como insetos deflagrando o bem e o mal simultaneamente pelos quatro cantos do planeta. 
Há ainda entre os humanos aqueles que se especializaram em desalojar com golpes de mestre, o Satanás dos corpos dos menos favorecidos. Claro que mediante ao pagamento de uma pequena taxa. Afinal a cobiça é que produz a corrupção e esta só se vê entre os humanos. 
Então pergunto: qual parte da espécie humana seria a imagem do Pai?  
Admito que ainda não está totalmente diluído o sentimento de sem fé em mim. O remorso do crucifixo bate quando penso no aspecto sombrio da vida. Ele se revela mais claramente quando percebo muita satisfação ao saber que bandidos, assassinos, traficantes, pedófilos, corruptos do dinheiro público ou coisas que o valham, foram mortos por pedradas, choques-elétricos ou espancamento em praças públicas, não importa, quanto mais sórdido são as mortes destes, mais saborosas se tornam as vinganças. As vísceras se contorcem iguais quando vejo baratas sendo aniquiladas. A sensação é de segurança e de um prazer sem igual.  Fica parecendo também, coisa do Demo.
Após o lampejo de felicidade a cobrança bate pesado. Olhares indignados surgem do nada à minha volta, me espreitando, me comendo vivo, me provocando. Eu me escondo deles e de mim mesmo. Sinto vergonha e disfarço. Depois de um tempo, passa e a vida volta como se nada tivesse acontecido. A hipocrisia sempre se supera. Coisas da nossa natureza.
Não sou mais o crente que fui, evito pensar no passado, dou mais valor para o hoje e no que poderá acontecer de bom amanhã. Passado, só em livros de história. 
Mas escapam ainda no dia-a-dia ateu os "Graças a Deus” “Ah, meu Deus!”, “Jesus do céu, me ajuda!”, “Minha Nossa!” “Deus me livre!” e outras. 
Não pega bem para um ateu falar dessa maneira, eu sei, vai tudo por água abaixo. Preciso trabalhar esse lado.
Reconheço que ainda encontro alguma dificuldade para complementar com simpatia, frases daquelas do tipo: Amanhã vai dar tudo certo!  
O que dizer com sorriso no rosto sem utilizar o consagrado:  “Se Deus quiser”? 
Vida de ateu de primeira viagem não fácil, mas sigo tentando até quando Deus permitir. (ops!!!)

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