20/11/2014

Parecia um Sonho

Em toda profissão existem aspectos bacanas convivendo com outros nem sempre legais. Estes vêm por osmose, como se diz, uma espécie de taxa obrigatória pela qual o sujeito paga para desfrutar do lado bom da profissão. Afinal, Paraíso não passa de um nome de bairro de São Paulo que carrega o louro de Éden sem mesmo ter por merecer. E se quer saborear doce melado, meu raro leitor, melhor mesmo é se lambuzar. Tem que meter o pé na jaca, não tem jeito.
O cidadão pode ser médico, engenheiro, dentista ou carpinteiro - não importa, ele vai sempre reclamar de alguma coisa. No entanto, ele também não deixa escapar a oportunidade de dizer que é feliz na profissão e ainda, muitas vezes, garante que é o melhor naquilo que faz. Complementa, garantindo que perceberam seu talento ainda menino. Coisa do destino! Diz orgulhoso, olhando para o céu, insinuando Deus e os Santos como cúmplices genuínos.
Eu tenho a minha. Faz muito tempo que iniciei em TV e foi lá em meados dos anos setenta, um pouco antes talvez, se considerarmos alguns estágios não remunerados em produtoras de cinema e de publicidade, isso antes e após o serviço militar. Sim, passei pelo 39˚BIM, bem nos anos de chumbo, num quartel de infantaria dos mais bravos, lá em Quitaúna. Mesmo sendo, míope, baixinho e de pés "chatos" não escapei dos treinamentos e dos prontidões. Foi um período de contrastes na minha vida: cabeça de moleque sonhador empunhando um FAL com todo rigor. Um, dois... um, dois... atento soldado... Passou, foi um ano difícil, mas se foi.
Eu era um garoto ambicioso e cheio de ideias. Um pirralho doido que queria vencer na vida pelos sonhos e que se guiava somente pela intuição. Acertando e errando como todos aqueles que se dispõem a conquistar o mundo. Quanta arrogância de adolescente.
A gente aprende ao longo da vida a moldar o tamanho do universo. Ele vai se adequando de acordo com o que a gente enxerga como tangível. As distâncias se encurtam com o tempo. Talvez esta seja a tal  "dobra de tempo" a qual os físicos se referem.
O tempo passou, as coisas mudaram, a vida se alterou em praticamente tudo ao meu redor. Me vejo como um outro cara, mudei de opinião, adquiri novos hábitos, gostos e sei lá mais o quê. Nem saberia relacionar o antes com o depois em mim mesmo. Nas lembranças enxergamos quem fomos um dia nos baseando em quem somos hoje sem considerar as mudanças ocorridas pelo tempo. 
Mas o prazer que carrego pela profissão continua intocável, parece coisa eterna, um diamante. Talvez agora eu seja menos tolerante com o tempo, principalmente quando ele se arrasta. Não é fácil viver boa parte da vida num mundo analógico e de repente ver as coisas se transformando em dígitos rapidamente e você ter que mudar de lado correndo só para se manter vivo. Não é fácil, mas é instigante, até mesmo para um pirralho como eu.
Ando registrando o meu dia em fotografias. Fotos digitais não precisam de revelações químicas, elas são diretas, objetivas. O complexo binário organiza as imagens dando aos olhos o alento da harmonia da composição e das cores. E com qualquer smartphone mediano pode-se hoje em dia obter lindas fotografias. Sem contar que o conteúdo sempre se sobre-pôs à qualidade técnica, pois o que vale mesmo no retrato é o flagrante eternizado.
Toda vez que posso, deixo minha sala com os papéis abarrotando a mesa para caminhar e respirar TV pelos corredores. A sensação é deliciosa, me faz lembrar dos primeiros dias quando coloquei os pés por lá. Em cada canto os olhos encontram uma história, um pedacinho da vida que ficou guardadinha ali. Cada momento que vem à mente chega repleta de cenas tumultuadas, com gente falando sem que se compreenda ao certo o que estão dizendo. Parte do que dizem e fazem são lembranças de coisas que de fato aconteceram, parte, se misturam a um imaginário de interpretações que a memória foi adaptando. Acho que são desejos frustrados, desvios de tempo que se transformaram em realidades paralelas.
Sigo pelos estúdios, pelos sets de gravações. Percebo os refletores suspensos apontados milimetricamente para alvos que ainda não estão posicionados. Objetos dispostos em cena, alinhados com equipamentos de última geração prontos para o start. Cabos espalhados por todo lado, gente andando apressadamente, alguns gritando e pedindo silêncio que nem mesmo eles podem cumprir. Bastidores de televisão funcionam como indústrias, há tempo certo para tudo.
Admiro as novas máquinas que editam as imagens e os sons. Elas interligadas e conectadas a um grande servidor dispensam as velhas fitas magnéticas. Até o cheiro do ambiente mudou. A velocidade agora é medida em Mbp/s - megabits por segundo e a capacidade de armazenamento da mídia não é mais em "tempo" o tempo se foi, agora mede-se em "Giga"ou "Tera" com esses no final.
É um mundo admirável que nos impressiona muito. Ainda mais para quem alcançou um lugar onde um garoto de subúrbio jamais pudesse supor que alcançaria um dia, mesmo sendo um sonhador lá nos anos sessenta e setenta, quando a vida para ele se refletia bela como num sonho.   
Acho que por isso que ele escolheu essa profissão, para ele parecia um sonho. 
Cenas noturnas do Especial de Natal que o SBT está produzindo.
Até hoje ele acredita que seja mesmo um sonho.

Foto do intrépido blogueiro utilizando seu moderníssimo smartphone.

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