28/03/2015

O que é isso?

As duas meninas de seis anos, sem que ninguém soubesse, invadiram a dependência da casa cujo acesso era rigorosamente controlado pelo avô rabugento. 
Aproveitaram-se da ausência dele pois conheciam bem as regras: o território era muito, muito e muito proibido.
O que será que o vovô guardava no quartinho que ninguém pudesse saber? 
A natureza humana é irremediavelmente curiosa e através das meninas essa afirmação se renovava.
Tomaram a chave que ficava escondida atrás de um vasinho na estante da sala de estar e seguiram para a zona proibida, sorrateiramente.
Acederam a luz do ambiente de não mais de três metros quadrados e percorreram com os olhinhos atentos a prateleira que ficava ao fundo onde estavam os livros e alguns cacarecos. Fixaram a atenção num objeto esquisitão sobre a escrivaninha.
Uma caixa de formato sem-formato que de certo escondia o segredo dos sete-mares em seu interior.
Vamos abrir! Pensaram. Daria para ouvir o pensamento das duas, tamanha a ansiedade.
Apertaram intuitivamente a chavinha da frente do caixote encapado com tecido que lembrava pano de sofá, fazendo com que a tampa se abrisse num clique com som de cloque, como num passe de mágica. 
As crianças adoram mágicas.
O diálogo se deu entre as primas, Alice e Gabi e foi registrado pela câmera de segurança que o avô rabugento instalara no escritório, na surdina, duas semanas antes. 
Ele, definitivamente, não gostava que ninguém mexesse em suas coisas.  
A tampa retirada e deixada de lado revelava a traquitana guardada no caixotão.
Gabi perguntou: 
__ O que é isso? 
__ Não sei, só sei que não podemos mexer. Respondeu Alice. 
__ Gozado, né? Será que é um tablet? A Gabi, sempre mais arrojada nas observações. 
__ Não, acho que não! Deve ser o computador velho do vovô. Tem teclado e tudo, olha… Considerou, Alice, que desde pequena demonstra maior afinidade com as coisas da tecnologia. 
__ Tem até impressora dentro desse tablet, olha o papel… Gabi aponta para a folha. 
__ É mesmo! E só tem uma folha aí. (Alice) 
__ Onde será que liga? (Gabi) 
__ Deve ser aqui numa dessas teclas ...mas não tem Control... (Alice) 
Toc Toc Toc 
__ Olha, tem uma fita vermelha e preta aqui, pra que serve isso?  Gabi, parece mais curiosa. 
Toc Toc Toc 
__ As teclas são duras, né? Difícil de apertar. Alice experimenta uma a uma com olhar atento. 
Toc Toc Toc 
__ A gente afunda a tecla e sai escrito no papel, imprime na hora. Se apertar forte fica melhor.
Gabi escreveu alguma coisa. Muito inteligente ela. As duas são. 
Depois de alguns minutos, acreditando terem encontrando um computador do tempo do onça, que nem ao menos tem chave de liga e desliga, as meninas saíram do quartinho meio que desencantadas. 
Apagaram a luz para que o rabugento não pudesse desconfiar que elas, um dia, invadiram o território proibido. 
__ O vovô é um chatão mesmo! Só gosta de coisa velha!  
A câmera secreta não identificou qual das duas disse tamanha mentira.
Imagens do blogueiro intrépido.

24/03/2015

Mia Couto

O escritor Mia Couto nasceu em Beira, província de Sofala em Moçambique, África.
Foi o primeiro conto que li do autor e fiquei mais do que impressionado. Se tiver um tempinho convido a apreciar.

A Rosa Caramela
Mia Couto

Acendemos paixões no rastilho do próprio coração. O que amamos é sempre chuva, entre o voo da nuvem e a prisão do charco. Afinal, somos caçadores que a si mesmo se azagaiam. No arremesso certeiro vai sempre um pouco de quem dispara.

Dela se sabia quase pouco. Se conhecia assim, corcunda-marreca, desde menina. Lhe chamávamos Rosa Caramela. Era dessas que se põe outro nome. Aquele que tinha, de seu natural, não servia. Rebaptizada, parecia mais a jeito de ser do mundo. Dela nem queríamos aceitar parecenças. Era a Rosa. Subtítulo: a Caramela. E ríamos.

A corcunda era a mistura das raças todas, seu corpo cruzava os muitos continentes. A família se retirara, mal que lhe entregara na vida. Desde então, o recanto dela não tinha onde ser visto. Era um casebre feito de pedra espontânea, sem cálculo nem aprumo. Nele a madeira não ascendera a tábua: restava tronco, pura matéria. Sem cama nem mesa, a marreca a si não se atendia. Comia? Ninguém nunca lhe viu um sustento. Mesmo os olhos lhe eram escassos, dessa magreza de quererem, um dia, ser olhados, com esse redondo cansaço de terem sonhado.

A cara dela era linda, apesar. Excluída do corpo, era até de acender desejos. Mas se às arrecuas, lhe espreitassem inteira, logo se anulava tal lindeza. Nós lhe víamos vagueando nos passeios, com seus passinhos curtos, quase juntos. Nos jardins, ela se entretinha: falava com as estátuas. Das doenças que sofria essa era a pior. Tudo o resto que ela fazia eram coisas de silêncio escondido, ninguém via nem ouvia. Mas palavrear com estátuas, isso não, ninguém podia aceitar. Porque a alma que ela punha nessas conversas chegava mesmo de assustar. Ela queria curar a cicatriz das pedras? Com maternal inclinação, consolava cada estátua:

- Deixa, eu te limpo. Vou tirar esse sujo, é sujo deles.

E passava uma toalha, imundíssima, pelos corpos petrimóveis. Depois, retomava os atalhos, iluminando-se de enquantos, no círculo de cada poste.

De dia lhe esquecíamos a existência. Mas às noites, o luar nos confirmava seu desenho torto. A lua parecia pegar-se à marreca, como moeda em encosto avaro. E ela, frente aos estatuados, cantava de rouca e inumana voz: pedia-lhes que saíssem da pedra. Sobressonhava.

Nos domingos ela se recolhia, ninguém. A velha desaparecia, ciumosa dos que enchiam os jardins, manchando os sossegos do território dela.

De Rosa Caramela, afinal, não se procurava explicação. Só um motivo se contava: certa vez, Rosa ficara de flores na mão, suspensa à entrada da igreja. O noivo, esse que havia, demorou de vir. Demorou tanto que nunca veio. Ele lhe recomendara: não quero cerimónias. Vou eu e tu, só nós ambos. Testemunhas? Só Deus, se estiver vago. E Rosa suplicava:

- Mas, o meu sonho?

Toda a vida ela sonhara a festa. Sonho de brilhos, cortejo e convidados. Só aquele momento era seu, ela rainha, linda de espalhar invejas. Com o longo vestido branco, o véu corrigindo as costas. Lá fora, as mil buzinas. E agora, o noivo lhe negava a fantasia. Se desfez das lágrimas, para que outra coisa serve o verso das mãos? Aceitou. Que fosse como ele queria.

Chegou a hora, passou a hora. Ele nem veio nem chegou. Os curiosos se foram, levando os risos, as zombarias. Ela esperou, esperou. Nunca ninguém esperou tanto um tempo assim. Só ela, Rosa Caramela. Ficou-se no consolo do degrau, a pedra sustentanto o seu universal desencanto.

História que contam. Tem sumo de verdade? O que parece é que nenhum noivo não havia. Ela tirara tudo aquilo de sua ilusão. Inventara-se noiva, Rosita-namorada, Rosa-matrimoniada. Mas se nada não aconteceu, muito foi que lhe doeu o desfecho. Ela se aleijou na razão. Para sarar as ideias, lhe internaram. Levaram-lhe no hospital, nem mais quiseram saber. Rosa não tinha visitas, nunca recebeu remédio de alguma companhia. Ela se condizia sozinha, despovoada. Fez-se irmã das pedras, de tanto nelas se encostar. Paredes, chão, tecto: só a pedra lhe dava tamanho. Rosa se pousava, com a leveza dos apaixonados, sobre os frios soalhos. A pedra, sua gémea.

Quando teve alta, a corcunda saiu à procura de sua alma minéria. Foi então que se enamorou das estátuas, solitárias e compenetradas. Vestia-lhes com ternura e respeito. Dava-lhes de beber, acudia-lhes nos dias de chuva, nos tempos de frio. A estátua dela, a preferida, era a do pequeno jardim, frente à nossa casa. Era monumento de um colonial, nem o nome restava legível. Rosa desperdiçava as horas na contemplação do busto. Amor sem correspondência: o estatuado permanecia sempre distante, sem dignar atenção à corcovada.

Da nossa varanda lhe víamos, nós, sob o zinco, em nossa casa de madeira. Meu pai, sobretudo, lhe via. Calava-se em si, todo. Era a loucura da corcunda que fazia voar nossos juízos? O meu tio brincava, para salvar o nosso estado:

- Ela é como o escorpião, leva o veneno nas costas.

Dividíamos os risos. Todos, excepto meu pai. Sobejava intacto, grave.

- Ninguém vê o cansaço dela, vocês. Sempre a carregar as costas nas costas.

Meu pai se afligia muito dos cansaços alheios. Ele, em si, não se dava a fatigar. Sentava-se. Servia-se dos muitos sossegos da vida. Meu tio, homem de expedientes, lhe avisava:

- Mano Juca, desarasca lá uma maneira de viver.

Meu pai nem respondia. Parecia mesmo que ele mais se tornava encostadiço, cúmplice da velha cadeira. Nosso tio tinha razão: ele carecia de ocupação salariável. O único despacho de seu fazer era alugar os próprios sapatos. Domingo, chegavam os do clube dele, paravam a caminho do futebol.

- Juca, vimos por causa os sapatos.

Ele acenava, lentíssimo.

- Já sabem o contrato: levam e, depois, quando regressarem, contam como foi o jogo.

E inclinava-se para tirar os sapatos debaixo da cadeira. Baixava-se com tanto esforço que parecia estar a apanhar o próprio chão. Subia o par de sapatos e olhava-lhes em fingida despedida:

- Custa-me.

Só por causa do médico é que ele ficava. Proibiram-lhe os excessos do coração, pressas no sangue. – Porcaria de coração.

Batia no peito para castigar o órgão. E voltava à conversa com o calçado:

- Vejam lá, vocês, sapatinhos: hora certa, regressam de volta.

E recebia, adiantado, os dinheiros. Ficava por muito gesto a contar as notas. Era como se lesse um gordo livro, desses que gostam mais dos dedos que dos olhos.

Minha mãe: era ela que metia os pés na vida. Muito cedo saía, rumo dela. Chegava ao bazar, a manhã ainda era pequena. O mundo transparecia, em estreia solar. A mãe arrumava a banca antes das outras vendedeiras. Entre couves empilhadas, se via a cara dela, gorda de tristes silêncios. Ali se sentava, ela e o corpo dela. Na luta pela vida, a mamã nos fugia. Chegava e partia no escuro. À noite, lhe escutávamos, ralhando com a preguiça do pai.

- Juca, você pensa a vida? – Penso, até muito. – Sentado?

Meu pai se poupava nas respostas. Ela, só ela, lastimava:

- Eu, sozinha, no serviço dentro e fora.

Aos poucos, as vozes se apagavam no corredor. De minha mãe ainda sobravam suspiros, desmaios da sua esperança. Mas nós não dávamos cuba a meu pai, Ele era um homem bom. Tão bom que nunca tinha razão.

E assim, em nosso pequeno bairro, a vida se resumia. Até que, um dia, nos chegou a notícia: a Rosa Caramela tinha sido presa. Seu único delito: venerar um colonialista. O chefe das milícias atribuiu a sentença: saudosismo do passado. A loucura da corcunda escondia outras, políticas razões. Assim falou o comandante.
Não fora isso, que outro motivo teria ela para se opor, com violência e corpo, ao derrube da estátua? Sim, porque o monumento era um pé do passado rasteirando o presente. Urgia a circuncisão da estátua para respeito da nação.

Do modo que levaram a velha Rosa, para cura de alegadas mentalidades. Só então, na ausência dela, vimos o quanto ela compunha a nossa paisagem.

Ficamos tempos sem escutar suas notícias. Até que, certa tarde, nosso tio rasgou os silêncios. Ele vinha do cemitério, chegado do enterro de Jawane, o enfermeiro. Subiu as pequenas escadas da varanda e interrompeu o descanso de meu pai. Coçando as pernas, o meu velhote piscou os olhos, calculando a luz:

- Então, trouxeste os sapatos?

O tio não respondeu logo. Estava ocupado a servir-se da sombra, curando-se da transpiração. Soprou nos próprios lábios, cansado. No seu rosto eu vi aquele alívio de quem regressa de um enterro.

- Estão aqui, novinhos. Eh pá, Juca, me fizeram jeito esses sapatos pretos!

Procurou nos bolsos mas o dinheiro, que sempre tem modos rápidos ao entrar, demorou a sair. Meu pai lhe emendou o gesto:

- A você não aluguei. Somos da família, calçamos juntos.

O tio se sentou. Puxou da garrafa de cerveja e encheu um copo grande. Depois, com ciência, pegou numa colher de pau e retirou a espuma para outro copo. Meu pai serviu-se desse copo, só com espuma. Proibido nos líquidos, o velho se dedicava só nos espumantes.

- É leve, a espuminha. O coração nem nota a passagem dela.

Se consolava, olhos em riste como se alongasse o pensamento. Não passava de fingimento aquele afundar-se em si.

- Estava cheio o enterro?

Enquanto desamarrava os sapatos, meu tio explicou a enchente, multidões pisando os canteiros, todos a despedirem do enfermeiro, coitado, também ele se morreu.

- Mas matou-se mesmo?

- Sim, o gajo se pendurou. Encontraram-lhe já estava duro, parecia gomadinho na corda.

- Mas matou-se por qual razão?

- Não sei lá. Dizem foi por motivo de mulheres. Calaram-se os dois, sorvendo os copos. O que mais lhes doía não era o facto mas o motivo.

- Morrer assim? Mais vale falecer.

Meu velho recebeu os sapatos e inspeccionou-lhes com desconfiança:

- Esta terra vem de lá?

- É onde, esse lá?

- Pergunto se vem do cemitério. – Talvez vem.

- Então vai lá limpar, não quero poeira dos mortos aqui.

Meu tio desceu as escadas e sentou-se no último degrau, escovando as solas. No enquanto, foi contando. A cerimónia decorria-se, o padre executava as rezas, abastecendo as almas. De repente, o que sucede? Aparece a Rosa Caramela, vestida de máximo luto.

- A Rosa já saiu da prisão? – perguntou, atónito, o meu pai.

Sim, saíra. Numa inspecção à cadeia, lhe deram amnistia. Ela era louca, não tinha crime mais grave. Meu pai insistia, admirado:

- Mas ela, no cemitério?

O tio prosseguiu o relato. A Rosa, por baixo das costas, toda de negro. Nem um corvo, Juca. Foi entrando, com modos de coveira, espreitando as sepulturas. Parecia escolher o buraco dela. No cemitério, você sabe, Juca, lá ninguém demora a visitar as covas. Passamos depressa. Só essa corcunda, a gaja…

- Conta o resto – cortou o meu pai.

Seguiu-se a narração: a Rosa, ali, no meio de todos, começou a cantar. Com educado espanto, os presentes a fixavam. O padre mantinha a oração mas ninguém já lhe ouvia. Foi então que a marreca começou a despir.

- Mentira, mano.

Fé de Cristo, Juca, me desçam duas mil facas. Despiu. Foi tirando os panos, com mais vagar que esse calor de hoje. Ninguém ria, ninguém tossia, ninguém nada. Já nua, esroupada, ela se chegou junto à campa do Jawane. Encimou os braços, lançou as roupas dela na cova. A multidão receou a visão, recuou uns passos. A Rosa, então, rezou:

- Leva essas roupas, Jawane, te vão fazer falta. Porque tu vais ser pedra, como os outros.
Olhando os presentes, ela ergueu a voz, parecia maior que uma criatura:

- E agora: posso gostar?

Os presentes recuaram, só se escutava a voz da poeira.

- Hein? Deste morto posso gostar! Já não é dos tempos. Ou deste também sou proibida?

O meu pai deixou a cadeira, parecia quase ofendido.

- Falou assim, a Rosa?

- Autêntico.

E o tio, já predispronto, imitava a corcunda, seu corpo vesgo: e este, posso-lhe amar? Mas o meu velhote se escapou a ouvir.

- Cala-te, não quero ouvir mais.

Brusco, ele largou o copo pelos ares. Queria despejar a espuma mas, de injusto lapso, saiu-lhe o copo todo da mão. Como se pedisse desculpa, meu tio foi apanhando os vidrinhos, tombados de costas pelo quintal.
Nessa noite, eu desconsegui de dormir. Saí, sentei a insónia no jardim da frente. Olhei a estátua, estava fora do pedestal. O colono tinha as barbas pelo chão, parecia que era ele mesmo quem tinha descido, por soma de grandes cansaços. Tinham arrancado o monumento mas esqueceram de o retirar, a obra requeria acabamentos. Senti quase pena do barbudo, sujo das pombas, encharcado de poeira. Me acendi, vindo ao juízo: estou como a Rosa, pondo sentimento nos pedregulhos? Foi então que vi a própria, a Caramela, parecia chamada pelos meus conjuros. Fiquei quase gelado, imovente. Queria fugir, minhas pernas se negavam. Estremeci: eu me convertia em estátua, virando assunto das paixões da marreca? Horror, me fugisse a boca para sempre. Mas, não. A Rosa não parou no jardim. Atravessou a estrada e chegou-se às escadinhas de nossa casa. Baixou-se nos degraus, limpou deles o luar. Suas coisas se pousaram num suspiro. Depois, ela se entartarugou, aprontando-se, quem sabe, ao sono. Ou fosse de sua intenção apenas a tristeza.Porque lhe escutei chorar, num murmúrio de águas escuras. A corcunda se derramava, parecia era vez dela se estatuar. Me infindei, nessa visagem.

Foi, então. Meu pai, em apuros de silêncio, abriu a porta da varanda. Lento, se aproximou da corcunda. Por instantes, ficou debruçado sobre a mulher. Depois, movendo a mão como se fosse um gesto só sonhado, lhe tocou os cabelos. Rosa nem se esboçava, a princípio. Mas, depois, foi saindo de si, rosto na metade da luz. Olharam-se os dois, ganhando beleza. Ele, então, sussurrou:

- Não chora, Rosa.

Eu quase não ouvia, o coração me chegava aos ouvidos. Me aproximei, sempre por trás do escuro. Meu pai lhe falava ainda, aquela sua voz nem eu lhe havia nunca ouvido.

- Sou eu, Rosa. Não lembra?

Eu estava no meio das buganvílias, seus picos me rasgavam. Nem sentia. O assombro me espetava mais que os ramos. As mãos de meu pai se afundavam no cabelo da corcunda, pareciam gente, aquelas mãos, pareciam gente se afogando.

- Sou eu, Juca. O seu noivo, não lembra?

Aos poucos, Rosa Caramela se irrealizou. Ela nunca tanto existira, nenhuma estátua lhe merecera tantos olhos. Meigando ainda mais a voz, meu pai lhe chamou:

- Vamos, Rosa.

Sem querer eu já saíra das buganvílias. Eles me podiam ver, nem me fazia nenhum estorvo. Parecia a Lua até atiçou seu brilho quando a corcunda se ergueu.

- Vamos, Rosa. Pega suas coisas, vamos embora. E foram-se os dois, noite adentro.

Mia Couto in “Cada homem é uma raça


"A mulher corcunda (também conhecido como Hunchback II)" Alexej Georgewitsch Von Jawlensky - óleo sobre painel - 54 x 49 cm - 1911 - (Private collection)

22/03/2015

Futuca a Tuia

Da série Caipiragem dos Domingos, lá vai uma poesia da terra.

 ARRUMAÇÃO
Eleomar Figueira de Melo
Josefina sai cá fora e vem vê
Olha os forro ramiado vai chuvê
Vai trimina riduzi toda criação
Das bandas de lá do ri gavião
Chiquera pra cá já ronca o truvão 
Futuca a tuia, pega o catadô
Vamo planta feijão no pó
Futuca a tuia, pega o catadô
Vamo planta feijão no pó 
Mãe purdença inda num cuieu o ai
O ai roxo dessa lavora tardã
Diligença pega panicum balai
Vai cum tua irmã, vai num pulo só
Vai cuiê o ai, o ai da tua avó

Lua nova sussarana vai passá
Sêda branca, na passada ela levô
Ponta d´unha, lua fina risca o céu
A onça prisunha, a cara de réu
O pai do chiquêro a gata comeu
Foi um trovejo c´ua zagaia só
Foi tanto sangue que dá dó

Os cigano já subiro bêra ri
É só danos, todo ano nunca vi
Paciênca, já num guento as pirsiguição
Já só caco véi nesse meu sertão
Tudo que juntei foi só pra ladrão

21/03/2015

A vida na periferia: Das mentiras de Ari

Um pequeno conto dedicado ao pensamento. Pela hipocrisia que roubou a alegria do nosso tempo.
Mesmo maculada, Rosalina não se entregou. 
Imagem do blogueiro intrépido
Pela primeira vez em trinta e oito anos de vida e com um casamento de vinte, agora desfeito, ela decidiu procurar um emprego para ter-se de conta própria. 
Menina, os pais sequer suportariam ver a única filha trabalhando por um salário digno: Isso é coisa de pai. 
Bonequinha de luxo jamais precisaria dessas coisas.
O estudo até o clássico bastaria, pois um casamento mais que perfeito, num modelo de futuro do pretérito imperfeito a aguardaria. 
No altar do padre Antonio, sisudo estaria.
O marido escolhido era filho de deputado e engenheiro. Boa pinta e partidão. Nunca teve lambreta. 
Um conto de fadas.
Três filhos procriaram: o mais velho, um menino cabeçudo e orelhudo, nitidamente de pensamento obtuso que todos diziam ter herdado o talento do avô paterno. 
Nasceu para ser político. 
Seguido por duas irmãs de olhos azuis que bem poderiam ter sido gêmeas idênticas, tamanha a semelhança nos semblantes, não fosse o intervalo de quase um ano. 
A avó, mãe do pai, as fez do-lar.
Depois, tudo acabou. Não deu certo, ela terminou. Não suportava mais um segundo das mentiras de Ari. Não teve estômago para insistir, deixou ele para as amantes e para o inferno a sociedade que os criou.
Chega dos pais, chega do casamento, chega da sogra, chega das cunhadas! Chega de tudo, chega, chega e chega! 
Explodam-se! Rosalina decretou. 
Encontrou a paz. Foi procurar a felicidade na periferia como caixa de supermercado à noite pra dormir de dia. 
Salve, Rosalina! Salve, Jorge! Salve, minha Nossa Senhora da Cruz Alta, Salve, campeão dos campeões! Salve-se quem puder. O último apague a luz do aeroporto, pois a coisa está verde-musgo. 
Ia dizer que estava preta, mas de certo, os neo-vigilantes da moralidade iriam falar que eu seria um racista irracional. Então, ponto final. 


15/03/2015

Sucrilhos, Mortadela e Compreensão


 
Fotografia emblemática essa. É o retrato do governo da revolução trabalhista brasileira.  
Homi, tem trabaiadô nessa disgrama?
Um ou outro dessa turma talvez tenha sido engajado um dia, mas o conjunto é medonho. Preocupa compreender essa governabilidade. Esse monte de iguais não representa o que seria de fato um grupo de ideias revolucionárias.  
Dão manutenção nas mentiras e mesmices. Mais uma vez.
A elite branca se manifestou neste domingo, se mobilizou como em dia carnaval. 
Pra mim ficou claro que essa multidão sente verdadeira ojeriza dessa casta que tem cara de quem comeu sucrilhos a vida toda e arrota mortadela de terceira pra dizer que é do povão. 
Políticos hipócritas se escondem nas grandes movimentações sociais. Hoje estão representados na exposição da presidência da república que paga a conta sozinha, injustamente. Juntando todos não dá um honesto e competente. 
Esse povão precisa ser ouvido, entendido e compreendido. Ninguém tem mais culhão pra engolir ladrão, ainda mais com cara de amigão. 
Valeu a mobilização, me pareceu civilizada e cheia de atenção. Para a preocupação da casta que cheira mortadela vencida.
O Chargista percebeu bem o espírito da coisa


14/03/2015

Sem porrada, gente!

Pessoal, só para lembrar, somos nós que estamos por aqui ainda e sabemos bem o final do enredo. 
Ilustração - John Lennon
Independente da cor da pele, da grana no banco, do time de futebol, do partido político, do sexo, se fazemos sexo com o mesmo sexo ou se não fazemos sexo, se a chamamos de presidente ou de presidenta, se a queremos ou não, se eu acho isso e você aquilo, nada disso é tão relevante depois da tensão. 
O que importa mesmo é não esquecermos que somos da mesma espécie, não somos zumbis, somos gente. Não pensamos da mesma forma, divergimos e conviver com a divergência é que são elas. 
Temos pontos de vistas diferentes, não gostamos das mesmas cores. Nem acreditamos num mesmo Deus e alguns, ainda, suspeitam da existência deles. 
Faz parte da nossa natureza, somos gente.
Se quiser ir pra rua protestar neste domingo, vá com fé, seja veemente, coerente, sem que para isso você precise provar ao mundo dando porrada em gente ou em latas de lixo ou vitrines de lojas onde trabalham mais gente. 
Se preferir não sair de casa, fique à vontade também, e nem se sinta um alienado de cérebro derretido. Se quiser andar de skate, de bike ou a pé, caminhe sem problemas. Abstenha-se.
Plante, regue e cultive. Vá a igreja, seja ateu, mas não haja como um zebedeu, por favor.
Você é um indivíduo, cada um de nós somos indivíduos. Somos um montão de indivíduos e carregamos nossas individualidades a vida toda para vivermos com outras gente.
Viver em grupo é uma arte. Pelo menos deveria ser.
À cada tempo chega mais gente, uns antes, outros depois, mas é certo para essa gente toda, o mesmo destino. E assim caminha a humanidade. 
Seria bom se pra tudo isso não precisássemos dar porradas, bastaria ser gente, já seria o suficiente.

10/03/2015

Impeachment

Sinceramente não tenho certeza que a presidente Dilma Rousseff deveria ser deposta assim de bate e pronto. Pareceria uma lança espetada nas costas da democracia. 
Foto vencedora do Prêmio Internacional de Jornalismo Rei da Espanha.
Wilson de Souza Junior - Agência Estado
Certeza eu tenho que jamais gostaria de te-la na presidência do Brasil, nem ela e nem qualquer outro de ideias totalitaristas disfarçadas de populares. Portanto, bolivariano nenhum seria presidente de um país onde eu tivesse que viver. Opto pela liberdade.
Não sei se a manifestação prometida para o domingo próximo deveria acontecer, ela está com jeito de ódio no ar, assim meio que brigas entre torcidas organizadas. Caso ela aconteça na proporção anunciada, pelo menos pela razão de um impeachment, seria a meu ver, um ato bem bolivariano e não de coxinhas.
Manifestação contra a política econômica, contra os excessos de impostos, inflação, intolerância com a corrupção, que agora se escancara pra todo lado, vale e valeria. 
 Como não sou a favor da pena de morte, apesar que a aceitaria em casos extremos, acho que a presidente Dilma deveria permanecer no cargo até o último momento de seu mandato, fazendo valer os votos recebidos pra ela sentir na pele cada minuto, cada segundo desse mandato difícil muito por consequência da péssima administração de sua primeira passagem. Com cobrança atenta de um povo que está explodindo de indignação e muito cansado de ser idiota.
Claro que não devemos cobrar somente da presidente, apesar dela e por ela, óbvio que não, seus vizinhos de poder, os do legislativo, por exemplo, deveriam estar na berlinda também, com o mesmo peso e a mesma medida.
Políticos de modo geral não prestam, não valem o que comem, dizia meu avô. 
É possível que haja excessões entre eles, mas o sistema está tão corrompido que o eventual honesto, caso haja essa espécie entre eles, acaba cedendo à pressão do partido e se torna um farinha do mesmo saco. 
Acho inocente e em alguns casos até maldoso a afirmação que quem não é a favor do governo faz parte de uma classe social privilegiada, uma elite branca de coxinhas. 
Sinto vergonha alheia quando ouço, vejo ou leio militantes ou simpatizantes ao governo tratarem a opinião oposta da forma tão insensata, como que somente eles detivessem a verdade, que somente eles enxergassem a pureza na imensidão do universo.
Quem não é a favor do governo pode até pertencer a uma classe privilegiada, mas seria uma classe dos que não se deixaram iludir por mentiras e que o mundo não estaria dividido entre petistas e psdebistas. 
Me lembro de um personagem de Dias Gomes chamado Sinhozinho Malta. Era um coronel totalitarista que praticamente mandava na cidadezinha que possivelmente se localizava nos fundões do nordeste brasileiro. Ele adorava cachaça, tinha jeitão simplório e era muito simpático com todos. Mas na verdade ele escondia um capeta dentro dele. Sinhozinho Malta era respeitado e temido, um Deus, praticamente.
No jeito jeito de ser ele dividia o mundo em duas porções bem distintas: os que estavam a seu favor e os que não estavam. Quem não concordasse, era, portanto, um inimigo e devia ser banido.
Impeachment não, deixa a gata tentar sair dessa.  A gente fica de olho.
ops... não a chamei de vaca porque percebi que alguns não gostaram da associação com tão respeitado animal. Olha que além dos indonésios, os indianos também poderão não gostar da gente!

08/03/2015

Muito além da Dilma e do Lula

Distante dos manteúdos encontra-se a natureza brasileira. 
Encontrei o artigo no site www.naoentendodireito.com - publicado em maio de 2014. Achei demais curioso.  
Duvidei da veracidade, pois ultrapassava de longe qualquer coisa absurda que já tinha ouvido falar. Ainda não garanto que seja real, é difícil de acreditar, mas no mínimo é muito engraçado e a gente sabe que por aqui, como dizem, tudo pode acontecer.  
Vai bem ao estilo do nosso modo de vida - um finge que ensina e o outro finge que aprende, e assim seguimos entre um carnaval e outro numa grande fantasia.  
Dona Dilma, pentelhos e cérebros lavados garantem que está tudo bem por aqui, os excessos vêm da imprensa golpista e da elite reacionária, os tais coxinhas. Não há e nunca houve desvios na Petrobrás, mensaleiros é coisa mais que inventada, enfim, filhos das putas, somos nós e não eles. 
Vamos lá.
ADVOGADO ESCREVE RECEITA DE PAMONHA NA PETIÇÃO PRA PROVAR QUE JUIZ NÃO LÊ OS AUTOS 
Postado: terça-feira, maio 27, 2014 Em Porra Doutor 
Quando eu via as notícias de que um estudante havia escrito o modo de preparo de um macarrão instantâneo na redação do ENEM eu achei que seria o máximo que alguém poderia fazer, mas aí um cara escreveu o hino do Palmeiras. 
Em um delírio, eu pensei, será que algum advogado, um dia teria coragem de escrever isso em uma petição? 
TERIA! 
Um advogado que obviamente pediu para não ter o seu nome revelado, nos enviou esta petição em que ele prova por A + B que juiz não lê jurisprudência! 
Sim meus amigos, ele escreveu uma receita de pamonha na petição… E PASSOU BATIDO PELO JUIZ! 
Veja: inacreditável 
Como a letra tá pequena, eu vou transcrever o que está escrito: 
“Senhores julgadores, espero que entendam o que faço nestas pequenas linhas, e que não seja punido por tal ato de rebeldia, mas há tempos os advogados vem sendo desrespeitados pelos magistrados, que sequer se dão ao trabalho de analisar os pleitos que apresentamos. Nossas petições nunca são lidas com a atenção necessária. A maior prova disso, será demonstrada agora, pois se somos tradados como pamonhas, nada mais justo do que trazer aos autos a receita desta tão famosa iguaria. Rale as espigas ou corte-as rente ao sabugo e passe no liquidificador, juntamente com a água, acrescente o coco, o açúcar e mexa bem, coloque a massa na palha de milho e amarre bem, em uma panela grande ferva bem a água, e vá colocando as pamonhas uma a uma após a fervura completa da água, Importante a água deve estar realmente fervendo para receber as pamonhas, caso contrário elas vão se desfazer. Cozinhe por mais ou menos 40 minutos, retirando as pamonhas com o auxílio de uma escumadeira.”
A bagaça perdeu o caldo, tá tudo dominado.